Dados sobre o número de vigilantes são imprecisos, em um setor que há décadas se expande sem controle e que abriga um exército de policiais que atuam nas horas de folga.
A morte criminosa de João Alberto por seguranças de um supermercado da rede Carrefour em Porto Alegre, no dia 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra, representa mais uma vez um alerta tanto sobre o racismo historicamente entranhado no país e sobre os problemas específicos relacionados à segurança privada, setor que há décadas se expande e funciona sem efetivo controle das autoridades públicas.
Como dezenas de outros casos de abusos e outras brutalidades, o de João Alberto teve com vítima uma pessoa negra que, seguramente, não teria recebido o tratamento brutal que recebeu se não fosse pela cor da sua pele.
Resolver deficiências existentes no setor de segurança que atua nesses espaços de consumo, ou em qualquer outro, certamente não vai resolver os problemas de racismo, mas pode ajudar a conter as mortes, violências e outros abusos que acometem essas populações nos espaços policiados privadamente.
Historicamente, o surgimento oficial do setor no Brasil ocorre durante o regime militar, em 1969, através de Decreto Federal que instituiu a obrigatoriedade do uso da segurança privada no setor bancário. As empresas e funcionários passaram a crescer significativamente desde então, tendo seu aumento mais significativo a partir dos anos 1990, em que começa a ocorrer também grande disseminação de tecnologias voltadas à indústria da segurança eletrônica.
A legislação existente rapidamente se torna insuficiente para cobrir o avanço do setor, levando a uma nova regulamentação, em 1983, que é a lei ainda em vigor para o setor no país. Se pelo primeiro decreto as Secretarias de Segurança Pública dos Estados eram responsáveis pelo controle das atividades de segurança privada, ficando o treinamento a cargo das polícias civis, em 1983 o treinamento passa para responsabilidade do setor privado e o controle das atividades para o Ministério da Justiça e o Departamento da Polícia Federal. Nessa legislação se estabelece também o termo “vigilante” como caracterização oficial dos profissionais responsáveis pelo exercício das funções de segurança privada no país.
A falta de instrumentos eficientes de normatização e fiscalização dos governos estaduais e dos órgãos responsáveis (as secretarias estaduais de segurança e o Banco Central) foi um dos fatores importantes para mudar a responsabilização dos Estados para o governo federal. Esses problemas, entretanto, continuaram a ocorrer depois dessa mudança.
No Brasil, encontramos uma grande fragilidade nos mecanismos de controle e fiscalização da segurança privada nos seus diferentes segmentos, que estão a cargo da Delegacia de Controle da Segurança Privada - DCSP do Distrito Federal, e das Delegacias Estaduais de Segurança Privada - DELESPs. Essa fragilidade se assenta no subaproveitamento dos poucos recursos existentes para a realização desse controle, que foi agravada pelo processo intenso de expansão do setor nos anos 1990 e 2000. De acordo com os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, estão atualmente em atividade no Brasil 545.477 vigilantes, número que vem apresentando uma queda desde 2018. Naquele ano, o número de vigilantes ativos somava 604.746, um contingente superior às polícias civis e militares em conjunto que, no mesmo ano, somavam 592.606 policiais, de acordo com o mesmo Anuário. Esses dados não consideram, entretanto, as pessoas que atuavam irregularmente no setor no período, as quais, mesmo nas estimativas mais conservadoras, seriam em número superior ao dos vigilantes regulares.
As dificuldades de fiscalização relacionam-se tanto à precariedade dos dados disponíveis quanto à escassez de recursos humanos e financeiros da Polícia Federal, fazendo com que a capacidade de regulação e controle seja muito pequena e precária para fiscalizar o setor que atua regularmente, bem como o vasto setor informal das empresas clandestinas, responsáveis pela maior parte das infrações, irregularidades e crimes. Além disso, há um exército de policiais que atuam nas horas de folga no chamado “bico” na segurança privada, tanto em empresas clandestinas como regulares.
O bico tem diversas implicações deletérias dentre as práticas envolvendo o setor, assim como na própria gestão das polícias. Ele envolve não apenas os praças (cabos e soldados das polícias militares) – que atuam sob muito mais risco por estarem sem respaldo da corporação, sofrem estresse pela jornada de trabalho e morrem com muito mais frequência quando exercem essa função irregular - mas também oficiais, que organizam as escalas de serviço dos policiais em função do bico, comprometendo atividades da corporação.
Nesse acúmulo de problemas, as empresas que contratam os serviços de segurança privada são pouco ou nada fiscalizadas e responsabilizadas pelo poder público. Não se tem também nenhum controle sobre a forma como cada empresa que contrata os serviços de segurança privada irão direcioná-lo na prática, o que pode ser determinante para a ocorrência de abusos e desrespeito aos direitos individuais no interior de suas instalações.
Urge a necessidade de se instaurar formas eficazes de se atuar sobre esses diferentes problemas do setor. Há produção acadêmica sobre o tema desde pelo menos os anos 1980. Há importantes propostas circulando no Congresso Nacional há pelo menos uma década, ainda em longo processo de tramitação. E há muito pouco envolvimento do meio político e da sociedade na articulação de transformações nesse cenário em relação às práticas de segurança privada e seus diversos campos de atuação.
Se os responsáveis por tais transformações continuarem ausentes na tarefa de realizar mudanças profundas na organização do setor e no efetivo controle de suas atividades, certamente continuaremos a ver nos espaços policiados por segurança privada outros abusos e crimes que têm sido cometidos pelos que nele atuam.
André Zanetic
Doutor em Ciência Política e pesquisador nas áreas de Segurança, Violência e Justiça. Especialista em Dados e Estatística do Programa Fazendo Justiça, parceria entre o PNUD e o Conselho Nacional de Justiça, é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.