Igor Barradas, de 34 anos, e Carlos Victor Vitório, de 33, são cabos da Polícia Militar. O primeiro trabalha no Piauí; o segundo, no Distrito Federal. Os dois têm essencialmente a mesma função: são responsáveis por liderar grupos de soldados, e, geralmente, quando estão numa patrulha, são eles que dirigem a viatura policial. Apesar de ocuparem a mesma posição na hierarquia da PM, estão afastados um do outro por uma grande diferença salarial: enquanto Barradas tem salário bruto de 3,5 mil reais, Vitório ganha mais que o dobro disso: 8,7 mil reais. Considerando os salários médios, nenhum cabo da PM, em todo o Brasil, é tão bem pago quanto o que trabalha no Distrito Federal, e nenhum recebe tão pouco quanto o do Piauí – embora todos tenham, a rigor, exatamente as mesmas tarefas.
Essas duas unidades da federação ocupam os extremos da pirâmide salarial das Polícias Militares no Brasil, marcada por enormes desigualdades. Enquanto a mediana dos salários brutos de toda a tropa do Piauí é de 4,1 mil reais (isto é, metade dos 5,6 mil policiais piauienses ganha acima disso, e metade abaixo), no Distrito Federal a mediana é de 10,8 mil. No Brasil como um todo, a mediana dos salários da PM é de 5,6 mil reais.
Os dados, inéditos, fazem parte do novo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que coletou informações salariais de quase todos os estados brasileiros. Apenas Bahia e Rio Grande do Sul não forneceram dados; Rio de Janeiro, Roraima e Mato Grosso do Sul forneceram parcialmente. O Anuário também revela que o número de mortes causadas pelas polícias civil e militar, em 2020, foi o maior de toda a série histórica, que começou em 2013: mesmo com a pandemia, 6,4 mil pessoas foram mortas por policiais. No ano passado, haviam sido 6,3 mil, segundo os dados do Anuário. O número total de homicídios no país, depois de dois anos em queda, voltou a subir.
“Nosso salário é baixíssimo. Um cabo que trabalha no Maranhão, estado vizinho ao nosso, tem salário equivalente ao de um subtenente aqui no Piauí”, reclama Barradas. “O policial é obrigado a tirar bico, a sacrificar as folgas para ser segurança em posto de gasolina. Muitos acabam morrendo nesses bicos.” Solteiro e sem filhos, ele comprou há alguns anos uma casa financiada em trezentos meses pela Caixa Econômica Federal. Como não precisa sustentar uma família, sua condição é melhor, segundo ele, do que a da maioria de seus colegas, que vivem de aluguel e não têm carro próprio. “Esse dinheiro não dá, ainda mais com a gasolina a 6 reais e a inflação comendo o salário do jeito que tá”, diz Barradas. Seu colega de patente do Distrito Federal, o cabo Vitório, tem carro, mas paga aluguel. Também mora sozinho. “A PM daqui é uma das que pagam bem, sim, mas o custo de vida é muito alto”, explica.
Essas discrepâncias salariais se devem ao fato de que não há uma coordenação nacional a respeito das carreiras da Polícia Militar. Embora a estrutura e a função das PMs tenham sido definidas em âmbito federal, por meio do decreto nº 8877 de 1983, a Constituição determina que as polícias são responsabilidade do governador de cada estado, a quem cabe definir a política salarial e o plano de carreira dos policiais. Essa autonomia dos estados – que nem sempre têm as mesmas condições orçamentárias nem a mesma organização política pressionando por aumentos dentro dos batalhões – fez com que, ao longo do tempo, houvesse um abismo entre os salários pagos em cada estado.
“Essa tensão inaugural entre o decreto do governo federal e a Constituição colocou em xeque, desde o fim da ditadura, qualquer modelo de integração das polícias. Então essas mudanças ficam à mercê de pressões políticas”, explica Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, responsável pelo Anuário. “Os governadores foram se adaptando à legislação de acordo com as pressões e os motins das polícias.”
A pressão política ajuda a explicar, em parte, os altos salários pagos aos praças da PM do Distrito Federal – que, diferentemente dos estados, é financiada com dinheiro da União. Os policiais da capital são responsáveis pela segurança do Congresso, onde são votados os aumentos salariais tanto da Polícia Militar quanto do Corpo de Bombeiros de Brasília. “Essa proximidade ajuda”, explica Vitório, cabo que preside a Caserna, associação que representa os praças da PM do Distrito Federal. Além disso, a vinculação ao orçamento da União permite uma situação financeira mais estável. “Não somos dependentes de governo estadual. Estados como Piauí, Maranhão e Paraíba, por exemplo, têm menor serviço público e menor arrecadação, então a PM acaba entrando na jogada”, diz o cabo Lucílio dos Santos, relações públicas de outra entidade – a Associação dos Oficiais da PMDF.
No caso do Distrito Federal, não apenas os salários são mais altos como há distorções na carreira. Segundo os dados do Anuário, a capital tem 5,6 mil sargentos e apenas 3,2 mil cabos e soldados. Ou seja: há muito mais caciques do que índios, já que o papel dos sargentos é comandar cabos e soldados. Na verdade, esse é um problema generalizado da Polícia Militar no Brasil. Além do Distrito Federal, outros cinco estados (Tocantins, Acre, Amazonas, Goiás e Rio Grande do Norte) têm mais sargentos do que subordinados. Dez estados (entre eles Minas Gerais e Rio de Janeiro) não chegam a ter dois cabos e soldados para cada sargento, o que cria um cenário similar de muitos chefes para poucos chefiados.
Isso acontece, sobretudo, devido à falta de novos concursos. Com o passar dos anos, soldados e cabos vão sendo promovidos a sargentos por tempo de serviço, e as vagas que deixam para trás não são preenchidas. As promoções, além disso, são usadas muitas vezes como uma gambiarra para aumentar salários da PM. Em 2019, por exemplo, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, reduziu o tempo necessário para que alguns policiais da capital fossem promovidos, e é possível que uma nova redução aconteça ainda este ano.
“O fato de haver mais sargentos do que cabos e soldados mostra que essa estrutura de carreira não tem a mínima funcionalidade. O sargento acaba fazendo a mesma atividade que o cabo e o soldado”, diz Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Então por que essa divisão? Por que não valorizar e criar uma função só? Assim você simplifica a carreira e ainda diminui a distância entre o menor e o maior salário.”
Na maior parte dos estados, um abismo separa o salário dos praças – soldados, cabos, sargentos e subtenentes – do salário dos oficiais – tenentes, capitães, majores, tenentes-coronéis e coronéis. No Brasil, a diferença média entre a base e o topo da carreira é de seis vezes. No Paraná, que tem a remuneração média mais desigual, a diferença é de oito vezes: a mediana do salário dos coronéis é de 34,5 mil reais (uma das mais altas do país, perdendo apenas para Goiás), enquanto a mediana dos soldados é de 4,4 mil.
Para além da média salarial, olhar os extremos da pirâmide indica anomalias e diferenças ainda maiores. No Brasil, considerando a mediana dos salários mais altos dos estados versus a mediana dos salários mais baixos, a diferença entre o menor e o maior contracheque é de quinze vezes, em média. No Rio de Janeiro, onde essa diferença é mais gritante, a distância é de 35 vezes. A maior remuneração de um PM no Rio é de 42,6 mil reais, enquanto a menor é de 1,1 mil. A Secretaria da Casa Civil do Rio, no entanto, não informou a que patentes esses salários correspondem.
O Brasil tem 406 mil policiais militares, 93 mil policiais civis e 55 mil bombeiros, além de 96 mil policiais penais e 12 mil peritos técnicos. Dentre os policiais civis, militares e bombeiros, 5 mil agentes (1% do total) têm remuneração acima de 27,3 mil reais, valor máximo pago às carreiras de Estado. Dentre esses, um pequeno grupo de 631 servidores ganha mais do que 39,2 mil reais – remuneração maior que a dos ministros do STF e, portanto, acima do teto constitucional. Essa “tropa de elite” das polícias se concentra principalmente em Goiás e no Amazonas, estados que, junto com Paraná e Mato Grosso, pagam os mais altos salários para quem está no topo da carreira da PM.
Como sargento da PM do Piauí, Bruno Lima recebe salário bruto de 3,9 mil reais, enquanto a mediana de seus colegas no Distrito Federal é de 11,4 mil reais. Faz dez anos que Lima entrou para a corporação. Ainda mora na casa dos pais, em Novo Santo Antônio do Piauí, cidadezinha de menos de 5 mil habitantes, a cerca de 100 km da capital. Ele pretende se mudar no final do ano, quando se casar. Está construindo uma casa em Teresina. “O salário de policial não dá para quase nada, e é uma carreira muito pouco atrativa”, ele diz. “Para um soldado se tornar subtenente, maior patente como praça, demora quase vinte anos, e o aumento de salário é de 1,5 mil reais. Não vale a pena. Por isso tanta gente tem desistido.”
Lima conta que, desde que entrou para a polícia, faz bicos para poder complementar o salário. No começo, aceitava trabalhos como segurança, mas, ao se formar em direito, passou a procurar vagas de maior qualificação. Hoje, quando não está de farda, ele é professor de direito numa faculdade particular em Teresina e coordenador pedagógico de uma escola em Novo Santo Antônio do Piauí. “Talvez a polícia é que seja meu bico”, ele diz.
Por Luigi Mazza/Revista Piauí