A partir de 2006, quando foi sancionada a Lei Maria da Penha, chamou atenção a falta de redução significativa nos números de assassinatos de mulheres. Em alguns momentos, o número chegou até mesmo a aumentar, o que induzia à conclusão que a nova lei de proteção às mulheres não teria surtido efeito para conter a violência doméstica e familiar.
No entanto, nessa mesma época ocorreu uma migração dos mercados ilícitos de drogas do Sudeste para outras regiões do país, o que, consequentemente, levou ao aumento dos números de homicídios nos novos locais, tornando Norte e Nordeste as regiões mais violentas do Brasil.
Apesar de se apontar o tráfico de drogas, e os efeitos sistêmicos de sua criminalização, como um dos fatores mais importantes para explicar os números de mortes masculinas durante as duas últimas décadas, essa associação não é feita com a mesma contundência para compreender a violência letal contra as mulheres, com a manutenção do foco de análise sobre as mortes violentas femininas ainda em cima dos tradicionais feminicídios, isto é, da violência doméstica e/ou sexual. Isso talvez porque nos estudos clássicos sobre homicídios seja comum a afirmação de que, enquanto os homens morrem nos espaços públicos, nas mãos de pessoas sem vínculo afetivo, as mulheres morrem geralmente em casa, nas mãos de pessoas de seu convívio íntimo, sobretudo o parceiro ou o ex-parceiro.
Porém, dado o avanço do tráfico de drogas no país, o crescimento galopante dos índices de encarceramento feminino por esse delito e o aumento massivo e seletivo dos assassinatos de mulheres negras - o que não é uma característica da violência doméstica, que atinge mulheres de raças mais diversas - questionamos se ainda era possível afirmar que os números de homicídios de mulheres ainda se deviam, em sua maioria, aos tradicionais feminicídios.
Para além desses indicativos, seria surpreendente que pesquisas atuais ainda reproduzissem números muito próximos de estudos semelhantes de 50 anos atrás, que apresentavam que cerca de 40% das mulheres morriam nas mãos do parceiro, quando suas vivências eram muito distintas das atuais, num contexto em que o patriarcado, o capitalismo e o racismo se manifestavam de outra maneira.
Nos anos 1970, havia pouco que o Brasil deixara de ser um país rural, com relações de espaço público e privado diferentes das que existem hoje. Dentre as que trabalhavam, o emprego doméstico era o que ocupava a maior parte delas, longe do olhar público dos sindicatos e, muitas vezes, do Estado. Mesmo entre mulheres de distintas raças, uma minoria delas era economicamente ativa, o que hoje já é uma maioria. Além disso, mudanças atuais no âmbito da família, como o crescimento das famílias monoparentais chefiadas por mulheres, cada vez mais as têm impulsionado a trabalhar fora de casa e a exercer a responsabilidade econômica do lar. São também notáveis as mudanças acerca dos papéis sexuais, do foco de atuação do Estado, do tratamento à violência doméstica; todos esses são fatores que transformam as formas de vida das mulheres e, como consequência, modificam suas vulnerabilidades à violência, expondo-as mais aos espaços públicos e com a vida menos restrita ao ambiente doméstico, submetendo-as crescentemente ao poder do Estado e do mercado, e em menor medida ao poder de um único homem dentro de casa.
Junto a essas mudanças, o capitalismo neoliberal, marcado pela precarização do trabalho e pela fraca estrutura de assistência social, tem afetado de forma especial as mulheres, principais beneficiárias desse serviço, o que as tem impelido aos mercados ilegais. Nas imbricações entre classe e raça, o principal alvo de neutralização da população empobrecida é a juventude negra, e isso inclui as mulheres negras, com o encarceramento (em especial por tráfico de drogas) como principal estratégia de contenção dessa população.
Pesquisamos, então, duas capitais do país que se destacaram nas primeiras décadas do século XXI pelo aumento dos números de mortes violentas: João Pessoa e Porto Alegre. São duas cidades com inúmeras diferenças socioeconômicas, mas que tinham em comum os baixos índices de violência letal no começo dos anos 2000, o que logo veio a mudar, com o intenso crescimento dos índices de homicídio. Apesar de se apontar o tráfico de drogas como um fator relevante para essa mudança, o mesmo olhar não foi dado para entender as mortes de mulheres, que também aumentaram nesse ínterim.
Perguntando se a violência doméstica e/ou sexual era central para explicar os assassinatos de mulheres, fizemos então uma análise de inquéritos policiais arquivados entre 2013 e 2017 nas duas capitais, procurando definir os feminicídios e distingui-los de outros crimes a partir de dois elementos: o motivo baseado no gênero (o que inclui os casos de violência doméstica previstos na Lei Maria da Penha e o menosprezo e discriminação à mulher) e/ou uso de violência sexual. Os casos com motivo diverso e sem uso de violência sexual foram colocados em outras categorias.
A partir dessa análise, vimos que os crimes com motivação baseada no gênero e/ou violência sexual não foram os principais responsáveis para explicar o alto índice de mortes violentas de mulheres nas capitais estudadas, mas os delitos motivados por conflitos do tráfico de drogas, sem violência sexual – como confrontos entre facções, retaliações por deslealdade ou desobediência, dívidas de drogas, queima de arquivo e balas perdidas decorrentes desses conflitos –, que totalizaram 55,5% dos casos em Porto Alegre e 39,7% em João Pessoa.
A pesquisa tem algumas particularidades que talvez tornem seus resultados diferentes de outras investigações acerca do tema:
Além dessas questões de metodologia, é preciso atentar que a maioria das mulheres assassinadas eram solteiras e não coabitavam com parceiro, um fenômeno crescente nas mudanças dos arranjos familiares, o que reduz a presença ostensiva masculina no lar, bem como a dependência dessa figura, diminuindo, portanto, o fator de risco para o feminicídio que é a coabitação com parceiro.
Em relação aos feminicídios, eles foram, por coincidência, 14,3% tanto em João Pessoa quanto em Porto Alegre. Além dos casos mais conhecidos, resultantes de longos ciclos de violência entre casais e violência contra prostitutas, uma parte relevante deles se deu por parceiros envolvidos com o narcotráfico, que utilizavam a mesma violência da criminalidade urbana para enfrentar seus conflitos íntimos. Chama atenção também a reação dos homens à crescente emancipação das mulheres, como ter maior independência econômica ou social, o que era um fator de conflito que se destacava nos casos.
Essas e outras questões são tratadas no livro “Morte Violenta de Mulheres e Novas Vulnerabilidades: da violência do patriarcado privado à violência do patriarcado público” (Aspas Editora). Apesar de não ser possível afirmar que o mesmo fenômeno ocorra em todas as capitais brasileiras, podemos atestar que: não é mais óbvio fazer associações diretas entre mortes violentas de mulheres e violência doméstica e/ou sexual. Ressaltamos que o contexto da pandemia e o maior armamento da população pode influenciar para mudanças nesse quadro, o que será em breve investigado.
Mariana Nóbrega
Doutora em Ciências Criminais (PUCRS). Mestra em Ciências Jurídicas (UFPB).