Entre as incertezas que acompanharam a chegada do coronavírus ao Brasil, em março, preocupações com a segurança pública dividiram atenções com a saúde coletiva. Setores apontaram um iminente aumento da criminalidade e da desordem pública associado a um cenário de ruptura social alimentado pela pandemia. Somado a isso, a edição da Recomendação número 62 pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que incentivou juízes e tribunais a reavaliarem a necessidade de manter grupos específicos dentro de presídios, despertou temores de um quadro de insegurança generalizada.
Oito meses depois, ainda é cedo para dizer em que extensão a pandemia afetou os campos de segurança e de responsabilização criminal e suas interfaces, afinal, fluxos, dinâmicas e a própria sistematização e monitoramento de dados e de políticas sofreram grande impacto. Por outro lado, a reversão abrupta de tendências, especialmente quanto ao encarceramento crescente das últimas décadas, abriu novas possibilidades na abordagem da política penal a partir de evidências.
Pelo menos desde 1990, início da série histórica divulgada pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional (INFOPEN), o primeiro semestre de 2020 registrou a primeira redução da população privada de liberdade no país. Entre dezembro de 2019 e junho de 2020, houve diferença negativa de 76,7 mil pessoas privadas de liberdade, de 755,2 mil para 678,5 mil, uma queda de mais de 10%*. Também é a primeira vez em 19 anos que há uma redução no registro da taxa nacional de aprisionamento: do recorde histórico de 359,4 para 100 mil habitantes em 2019, para 323 para 100 mil habitantes, observados no último semestre.
Na porta de saída, houve mobilização inédita e em escala nacional do sistema de Justiça para reavaliar a necessidade da manutenção de prisão a partir da análise de cada processo, considerando a realidade local e melhores práticas de saúde e de segurança sanitária. A última atualização desses dados, feita pelo CNJ a partir do acompanhamento dos efeitos da Recomendação 62, em junho de 2020, já registrava pelo menos 35 mil retiradas emergenciais do sistema prisional em razão da pandemia, excluídas as demais progressões já esperadas para o período.
Quanto à porta de entrada, dados publicados recentemente pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram queda expressiva de crimes contra o patrimônio no primeiro semestre de 2020, chegando a 34% de redução de roubos a transeuntes. Embora alguns dados sigam preocupantes e/ou com variações ainda pouco explicadas, como é o caso das mortes violentas intencionais, que sobem desde o final de 2019, o termômetro quanto aos crimes de patrimônio é relevante pois, segundo o INFOPEN, trata-se do maior grupo de pessoas presas no país - em dezembro de 2019, 50% das pessoas estavam presas por este tipo de infração (504 mil), em junho de 2020 eram 277,2 mil (38,65%).
Esse texto não se propõe a uma análise exaustiva sobre a relação entre os dados apresentados, especialmente porque os fenômenos vêm associados a um momento histórico único, com variáveis inéditas para as dinâmicas de segurança pública, como o isolamento social, mudanças no padrão de policiamento e o pagamento do auxílio emergencial. No entanto, alguns pontos de reflexão podem ser levantados.
Em primeiro lugar, não se confirmou o temor de violência generalizada nas ruas e desordem em razão das medidas preventivas adotadas pelo sistema de Justiça para evitar a propagação do vírus nas unidades prisionais. A liberação inédita de milhares de pessoas para regimes menos gravosos não foi acompanhada do aumento geral de crime e de violência, que por outro lado, não retroalimentou a porta de entrada do sistema prisional com o mesmo vigor das últimas décadas.
Também cai por terra o pensamento de que as pessoas que cometeram crimes irão voltar a fazê-lo tão logo tenham oportunidade e independentemente do contexto – inclusive, dados de quatro tribunais compilados pelo CNJ apontam uma reentrada de menos de 2,5% de pessoas liberadas emergencialmente em razão da pandemia.
Com a constatação de que a redução da população prisional pode conviver com a queda em taxas de crimes, é possível inferir que ações com foco na maior racionalidade da ocupação prisional, como fomento a alternativas penais e monitoração eletrônica, assim como a proposta de centrais de vagas com ocupação taxativa de uma pessoa por vaga, podem reproduzir o mesmo êxito se associadas a políticas estruturantes.
Essas e outras ações que buscam respostas efetivas para desafios históricos no campo penal estão sendo conduzidas pelo Conselho Nacional de Justiça por meio do programa Fazendo Justiça. Trata-se da continuação da parceria iniciada em 2019 com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e importante apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, na figura do Departamento Penitenciário Nacional.
O objetivo é incidir de forma simultânea em diferentes fases do ciclo penal e socioeducativo com foco em resultados de médio e longo prazo. Esperamos que os cenários inéditos trazidos pela pandemia abram caminho para uma abordagem em que a prisão deixe de ser a resposta preferencial do Estado no campo da responsabilização, com ações alinhadas ao interesse social no campo da segurança, inclusão e efetividade de gastos públicos.
Luis Geraldo Sant"Ana Lanfredi (Juiz de Direito, Coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ).
Débora Zampier (Jornalista e Pesquisadora, coordena a comunicação do programa Fazendo Justiça (CNJ/PNUD/DEPEN).
(*) Os dados foram extraídos dos painéis disponíveis no site do DEPEN/MJSP. O órgão informou evolução na metodologia de coleta de dados sobre pessoas monitoradas a partir do último semestre - até dezembro de 2019, o preenchimento ficava a critério das unidades da federação, o que pode causar variações na totalização dos números e na análise histórica.