Por: RENATO SÉRGIO DE LIMA
A morte de João Alberto Silveira Freitas, homem negro espancado por seguranças irregulares e terceirizados de uma loja da rede francesa de supermercados Carrefour, em 2020, trouxe mais uma vez à tona o debate sobre o racismo estrutural da sociedade brasileira e escancarou um dos mais antigos problemas da segurança pública: a enorme lei do silêncio que impera quando falamos das relações entre seguranças pública e privada no país.
O caso João Alberto explicitou que mesmo uma das principais redes de varejo do mundo não controla quem faz e como é feita a vigilância de suas unidades no Brasil. Mais que isso: aceita que empresas por ela contratadas subcontratem profissionais da segurança pública, mesmo que estes sejam legalmente impedidos de terem um segundo emprego. Sim, por lei, o popular “bico”, o segundo trabalho exercido por profissionais de segurança, é proibido. Mas o Brasil não tem regras de compliance e governança que evitem tais situações e mitiguem potenciais conflitos de interesse.
Ao contrário, é comum ouvirmos que, quando algum crime envolvendo seguranças privados ganha repercussão, a razão de tais atos seja derivada de uma alegada falta de preparo dos profissionais. Isso não é verdade. Afinal, seja a parcela de seguranças contratada por empresas formais e legais de segurança privada, seja a parcela de profissionais da segurança pública que fazem “bico” como seguranças privados, elas possuem treinamento e formação para uso de armas e em técnicas de defesa pessoal.
No que diz respeito à segurança pública, é impressionante que a falta de regulamentação do “bico” não seja vista como uma das mais urgentes pautas de valorização e modernização dos profissionais da área. Vivemos um tácito e leniente pacto que oficialmente faz de conta que não sabe que esse tipo de atividade extra é exercido. Em vários outros países, como os Estados Unidos, não há problema algum em que profissionais de segurança tenham um segundo emprego, desde que regulado e auditado.
Dado ainda inédito da pesquisa Escuta de Policiais e demais profissionais da segurança pública do Brasil, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revela que 6% dos entrevistados declararam fazer atividades de segurança privada para complementar a renda. Ou seja, se considerarmos que, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública e com o IBGE, há aproximadamente 687 mil policiais e bombeiros e 99 mil guardas municipais no Brasil, o percentual de profissionais que respondeu que faz “bico” equivaleria, mesmo com todas as limitações metodológicas envolvidas em uma projeção dessa natureza, a pelo menos 47 mil policiais, bombeiros e guardas municipais – isso considerando só a projeção em relação aos profissionais da segurança pública que não veem problemas em assumir o segundo emprego. O número, portanto, pode ser ainda maior.
Esses quase 50 mil profissionais têm por missão garantir o cumprimento da lei e a manutenção da ordem – mas, por negligência de parte do poder público, vivem na fronteira da ilegalidade e, na prática, não estão sujeitos a nenhum mecanismo de fiscalização e controle. Ficam reféns de escalas de trabalho definidas pelas chefias e suscetíveis aos discursos populistas que prometem céus e maravilhas, mas que, quando no poder, omitem-se de suas responsabilidades. Também ficam suscetíveis às tentações milicianas, à ideia de lucro fácil e à lei do mais forte – aqui a autorização do porte e posse de armas de fogo tem um papel importante no recrutamento irregular desses profissionais para atividades de segurança privada.
No fundo, o profissional da segurança pública vale mais pela autorização do porte da arma de fogo que ele possui do que por outros atributos e/ou experiência. Eles são usados, muitas vezes, por empresários e executivos na privatização da segurança sem maiores constrangimentos éticos. E isso ocorre em detrimento do próprio setor econômico, sujeito a regras e controles que, talvez na cabeça de alguns mercadores, mais atrapalham do que ajudam.
Dados compilados pela Fenavist (Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores) e publicados na 15ª. Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, revelam que o setor formal de segurança privada tem reduzido a quantidade de pessoas contratadas nos últimos anos. Em 2018, excluídos os profissionais da segurança pública, havia no país 604.746 seguranças privados aptos a exercer a profissão na ativa. Em 2020, esse número foi reduzido para 526.108.
Dito de outro modo, em dois anos, 78.638 seguranças privados foram demitidos no Brasil. Esse contingente pode ser explicado por questões econômicas, como retração da economia em função da pandemia, e/ou a adoção de novas tecnologias e sistemas pelas empresas do setor. Mas tem relação direta com a contratação de policiais exercendo “bicos” em atividades irregulares de segurança privada – e seria 60% menor se o poder público efetivamente fiscalizasse a área e não apenas as empresas devidamente registradas e legalizadas.
A questão é, assim, mais complexa. Estamos diante de um enorme paradoxo. Temos profissionais da segurança pública atuando como seguranças privados para complementar a renda. Temos também que só as empresas legalizadas é que acabam sendo fiscalizadas regularmente e, mesmo assim, apenas em seus aspectos mais formais e burocráticos. Mas pouco monitoramos o dia a dia da segurança privada, abrindo margem para a oferta de serviços de má qualidade, clandestinos e que mesmo assim usam como cartão de visita o recrutamento de profissionais da segurança pública para suas equipes. A Polícia Federal não tem estrutura suficiente para fiscalizar o setor como um todo.
Isso fica ainda mais patente quando olhamos para os dados de registros de armas de fogo e munições em poder das empresas de segurança privada. De acordo com dados da Polícia Federal constantes no Anuário, as empresas privadas adquiriram em 2020 17,8 milhões de novas munições, total 64,7% superior ao de 2019, quando elas tinham adquirido 10,8 milhões de munições. E isso ocorre em um período de pandemia, com queda de cerca de 29% nos crimes patrimoniais, como roubos de carga, entre outros.
Nessa enorme zona de sombra, empresas clandestinas e/ou a contratação irregular de seguranças privados só são investigadas em casos de repercussão. Perdem a segurança pública; o setor privado, que se esforça para atuar dentro das regras do jogo e da legislação vigente; e a sociedade como um todo, que não consegue separar o que é um serviço legalizado de um irregular.
Esse limbo só interessa às milícias e aos empresários que se aproveitam para aumentar suas taxas de lucros às custas da insegurança da população e da exploração dos policiais brasileiros. E tudo isso sob os olhares de vidro de governos e autoridades.
Fonte: piaui.folha.uol.com.br