A questão do armamento civil para um policial é muito mais presente e complexa do que para alguém que pensa a questão em abstrato, como uma questão de princípio ou política. As armas compradas legalmente acabam no mundo do crime e podem ser usadas diretamente contra eles. Por tudo isso, é importante saber o que os policiais pensam sobre o assunto para respondermos às questões: os policiais apoiam mais ou menos do que a população em geral as restrições às armas de fogo? Que tipo de policial? E por quais razões?
A pesquisa "Escuta de Policiais e demais profissionais da segurança pública do Brasil", do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, procurou, nessa direção, explorar como os policiais veem a questão da liberação ou proibição de armas e quais fatores estão associados com a maior ou menor adesão a cada posição. Os primeiros resultados da pesquisa foram apresentados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021.
“Policial” é um termo muito heterogêneo e, por isso, as opiniões são matizadas de acordo com a corporação, gênero, nível hierárquico e outros fatores. Outras variáveis, como experiência de ser pessoalmente vitimado ou ter perdido colegas de trabalho, podem afetar as opiniões sobre o tema. Assim como a avaliação que o policial faz do governo Bolsonaro, sabidamente defensor da flexibilização da posse e porte de armas de fogo. Muitos trabalham em atividades de segurança privada durante a folga e precisam de armas particulares para o exercício do “bico”. Assim, são muitos e diversos os potenciais fatores e os motivos subjacentes para apoiar ou rejeitar o armamento civil.
Importante destacar que, nas análises subsequentes, exploraremos apenas relações bivariadas que se mostraram estatisticamente significativas¹. A intenção é destacar características que aumentam ou diminuem o apoio às armas. Posteriormente, estas variáveis podem ser testadas num modelo multivariado que estime os efeitos simultâneos do conjunto.
Na amostra completa, observamos que uma minoria de policiais é favorável à posse e porte de armas para todos na população, sem limites de qualquer natureza (10,4%). Por outro lado, é também uma minoria (16%) que defende a proibição e porte de todas as armas de fogo. A grande maioria dos entrevistados (73,6%) defende uma postura condizente com a legislação atual, ou seja, que permita o porte e a posse, mas com limites de quantidade de armas e munições, mecanismos de controle e rastreamento de armas, restrição a certos tipos de armamento, etc. Nem liberação completa, nem restrição total. Diferentes matizes em torno do que a legislação hoje já permite.
Existem muitas modulações nas opiniões dos policiais e há bastante divergência entre as corporações. Polícia Rodoviária Federal, Polícia Científica, Polícia Federal e Polícia Civil apoiam significativamente mais a proibição, enquanto o Corpo de Bombeiros e a Polícia Penal apoiam a liberação incondicional. Os agentes penitenciários sempre reivindicaram o direito de portar armas, o que explica talvez a maior adesão da categoria à tese da liberalização. A Polícia Militar, por fim, adere significativamente mais à proposta da liberalização limitada.
Com relação ao gênero, assim como parece ocorrer entre a população em geral², as mulheres são muito mais favoráveis à proibição (28,9%), praticamente o dobro do percentual de homens (13,7%). É digno de nota que entre os policiais que se identificaram como pretos, o apoio às restrições suba para 20,3%. Enquanto negros, eles parecem ter a consciência de que o impacto da maior circulação de armas na sociedade é bem maior para os jovens negros do sexo masculino, afetando suas opiniões sobre armas.
Com relação à religião, duas variações chamam a atenção. Os que se declaram sem religião demonstram um apoio muito maior que a média à proibição de armas (26,1%), sugerindo uma preocupação humanitária superior aos que dizem ter alguma religião. O segundo aspecto é que entre os Evangélicos é nítido o menor apoio à proibição total e o maior apoio à liberação das armas, especialmente entre os Pentecostais.
Os mais velhos apoiam mais a proibição (27,6%), tendência também captada na Polícia Federal por Borba (2020). Com relação às diferenças regionais, finalmente, o Nordeste defende menos a liberação (7%) e mais a proibição (21%) enquanto Norte e Sul demonstram menos adesão à tese proibicionista.
Embora irregular, muitos policiais desempenham outras atividades remuneradas, em especial na esfera da segurança privada. Na segurança privada, policiais em folga não podem usar armas funcionais e a legislação atual impõe uma série de limites ao uso de armas pessoais. Assim, não é de estranhar que o apoio à liberalização irrestrita cresça para 18,2% entre os que dizem ter outra atividade em segurança privada. Há assim uma razão instrumental para o apoio à liberalização entre os policiais que fazem bico ou estão ligados de algum modo ao setor privado de segurança.
Além das razões instrumentais, há um componente afetivo impactando as opiniões. Note-se que, entre os policiais que apontaram terem sido baleados em serviço, o apoio à liberalização irrestrita sobe para 17,4%, assim como entre aqueles que disseram terem sido vitimados fisicamente (12,1%) ou ameaçados de morte ou violência física (11,5%). Ao contrário, o apoio à proibição é nitidamente maior entre os que não foram baleados ou vitimados, bem como entre os que nunca presenciaram a morte de colegas (16,7%). Assim, ter sofrido ou presenciado violência por parte de criminosos parece afetar a predisposição com relação à flexibilização das armas.
Finalmente, o questionário traz uma bateria de questões sobre o enfrentamento à Covid-19 e particularmente duas que medem indiretamente o apoio ao governo federal. A primeira perguntava ao entrevistado “O quanto você concorda que as medidas como utilização de medicamentos como cloroquina, azitromicina, ivermectina são adequadas para prevenir a Covid-19?” e a segunda se o entrevistado “acredita que o Governo Federal está realizando ações para auxiliar seu trabalho na pandemia?”. Embora não sejam perguntas diretas sobre o apoio ao governo Bolsonaro, acreditamos que sejam boas medidas substitutas (proxies) deste conceito. Em outras palavras, a hipótese aqui é que o apoio ao governo Bolsonaro aumenta a chance de apoio à liberação irrestrita às armas (ou vice-versa, pois o sentido da associação pode ser inverso).
Com efeito, de todas as variáveis utilizadas, estas duas foram as que tiveram maior impacto sobre as opiniões sobre armas. O apoio à liberalização irrestrita sobe para 16,7% entre os policiais que acreditam no tratamento precoce à Covid-19 e para 14,6% entre os que avaliam que o governo federal está atuando para auxiliar na pandemia. Em nítido contraste, o apoio à proibição irrestrita sobe, respectivamente, para 46,1% e 30,2% entre os que discordam destas afirmações.
Resumidamente, existem chances muito grandes de que um profissional da segurança pública seja a favor da liberalização irrestrita das armas se ele for do Corpo de Bombeiros, homem, evangélico, trabalhar no bico de segurança, ter sido alguma vez vítima de violência e ser simpático ao governo federal. Em contraste, existem chances muito maiores de apoiar a proibição irrestrita se pertencer à Polícia Rodoviária Federal ou Científica, for mulher, negro, sem religião, ter ensino fundamental ou pós-graduação, mais de 60 anos e morar no Nordeste; além de não desempenhar atividade remunerada extra, não ter sido vitimado e discordar das medidas do governo federal.
A pesquisa sugere que as opiniões dos policiais, bombeiros e guardas sobre armas – como de resto da população em geral – são influenciadas por diversos fatores. Questões de identidade de gênero, cor, região, religião, carreira profissional afetam estas opiniões. Assim como razões de ordem instrumental, afetivas e políticas. Todas as nossas opiniões, sobre qualquer ponto, são um balanço destes múltiplos conflitos e contextos. Como dito inicialmente, trouxemos apenas associações bivariadas e é preciso construir um modelo estatístico mais sofisticado para verificar quais destas associações se mantêm quando controladas por outros fatores.
Conhecer a opinião dos profissionais da segurança pública – que lidam diariamente com armas de fogo e seus efeitos, positivos ou negativos – é importante para refletir sobre a questão. Coisa diferente é considerar, do ponto de vista da construção de uma política pública sobre armas de fogo, que a opinião dos policiais deva pesar mais (ou menos) do que as demais. Como vimos, existem razões econômicas, afetivas e ideológicas que afetam significativamente estas percepções. E estas são péssimas conselheiras quando se trata de defender o bem coletivo.
* Texto originalmente publicado na 15ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A íntegra pode ser acessada no
Túlio Kahn - Doutor em Ciência Política e consultor em Segurança Pública.