A Lei 14.193/2021, ao criar a sociedade anônima do futebol (SAF), segue a tendência de vários países nos quais os clubes futebolísticos são constituídos sob forma de empresa. É uma novidade interessante e, ao mesmo tempo, preocupante. Pretendo evidenciar algumas de suas incongruências e expor o perigo de sua implementação sem indispensáveis cautelas e ajustes, a começar pelos riscos de se prestar à ação de aproveitadores e de desaguar na judicialização das operações estruturais dessa nova figura jurídica.
O artigo 2º dessa lei permite que tal sociedade (SAF) seja criada por: 1) transformação do clube ou de outra eventual entidade que o tenha criado (chamada de pessoa jurídica original); 2) cisão do seu departamento de futebol; ou 3) iniciativa de pessoa natural ou jurídica. A dificuldade de compreender qualquer das duas primeiras operações está em que os clubes e demais agremiações que se dedicam a essa missão desportiva (leia-se sempre "clube"), como associações que atualmente são, não possuem associados titulares de parcela de seus patrimônios.
De fato, os associados, ainda que paguem para ter acesso e frequência às atividades associativas (joias e contribuições de custeio das atividades associativas), não têm direitos sobre o patrimônio da associação, que só a ela pertence. A Constituição Federal, ao assegurar a liberdade de associação (artigo 5º, XVII), permite ampla circulação de associados, sem que seu patrimônio seja afetado, diferentemente do que se passa com os sócios ou acionistas de uma sociedade. Associados não recebem haveres e, no caso de a associação ser dissolvida, seu patrimônio deve ser "destinado à entidade de fins não econômicos designada no estatuto, ou, omisso este, por deliberação dos associados, à instituição municipal, estadual ou federal, de fins idênticos ou semelhantes" (Código Civil, artigo 61, caput).
Sabe-se que, em certos casos, há associados que contribuem com recursos para a formação ou o aumento do patrimônio associativo. Porém, ainda que recebam quotas ou títulos "patrimoniais", não lhes é dado participar desse patrimônio, o qual, na hipótese de ser liquidado, só lhes pode conferir a devolução do "valor atualizado das contribuições que tiverem prestado ao patrimônio da associação" (artigo 61, §1º).
Sendo assim, tanto a operação de transformação quanto a de cisão não operam a passagem dos associados do clube para a condição de acionistas da mencionada SAF; não tendo participação no patrimônio que a ela irá ser aportado, eles não têm como participar de uma sociedade anônima na qual o acionista é um prestador de capital. O fato de a lei admitir a criação da SAF por meio de qualquer dessas operações, sem nada mais dispor a respeito, não autoriza aquinhoar os associados do clube com direitos patrimoniais que não possuem.
Portanto, a transformação do clube em SAF ou sua cisão com versão de parcela do seu patrimônio para a criação de uma SAF faria com que ela se tornasse sócia de si mesma, sem participação de qualquer associado. A cisão não opera a duplicação da sociedade cindida (do clube, no caso) nem a converte em acionista da sociedade nova por ela criada. Portanto, com a cisão, o clube não se torna sócio da SAF, porque ele é o destinatário da operação; se passasse a ser sócio, não haveria cisão, mas constituição pura e simples de uma sociedade na qual ele subscreveria suas ações com aporte de parte do seu patrimônio, tal como se dá na criação de uma subsidiária integral, que, no entanto, não pode ter como acionista uma associação, somente uma sociedade brasileira (Lei das SA, artigo 251).
Qualquer dessas alternativas, se viável, passaria pela necessidade de determinar quem seriam os acionistas ou como os associados poderiam participar da SAF, quem teria legitimidade para participar da deliberação sobre sua criação, como substituir voto per capita por voto ad valorem, como atingir o quórum de 50% para viabilizar a cisão ou uma deliberação unânime para a transformação (Lei das SA, artigos 221 e 136, inciso IX) etc. Aliás, em regra extensiva à transformação, estatui o artigo 2º, §1º, que a SAF "sucede obrigatoriamente o clube ou pessoa jurídica original nas relações com as entidades de administração, bem como nas relações contratuais, de qualquer natureza, com atletas profissionais do futebol". Há, nessa disposição, atecnia e obviedade, pois o que se dá nessa operação é, simplesmente, a mudança de regime jurídico de uma só e mesma pessoa jurídica, de modo que não há sucessão alguma: todos os direitos e obrigações que ela possuía antes da transformação — e não somente os elencados nesse dispositivo, como os decorrentes das relações com os associados — permanecem íntegros com ela nessa sua nova roupagem.
A solução que resta, portanto, é a constituição da SAF, "pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento" (artigo 2º, inciso III). Nesse caso, qualquer pessoa pode criá-la, sendo o clube seu principal protagonista, o qual, então, participará da subscrição de ações para sua criação com o aporte do conjunto de bens que houver de transferir — estes, previamente avaliados (Lei das SA, artigos 7º-10, 80 e ss). Tal subscrição, pública ou particular, deve contar, ainda, com outro ou outros subscritores, dentre eles os associados que posses tiverem para tanto. A menção feita a fundos de investimento é sintomática, visto que, para alavancar a SAF, seguramente será preciso captar volume significativo de recursos, capaz, até, de superar o valor do patrimônio com que o clube subscrever suas ações. Ao que parece, o legislador previu esse fato ao criar as ações classe A, mas aviou mal a receita, como se verá a seguir.
Limitado à análise da estrutura da SAF, observo que a lei, embora contenha restrições à aquisição de ações, não assegura o controle da SAF pelo clube, contentando-se em lhe conferir ações com direitos especiais, ditas de classe A (?!), as quais contêm direitos de veto em deliberações sobre temas reputados essenciais (alienação ou oneração de ativos, operações de concentração ou desconcentração empresarial, dissolução, participação em competição esportiva, mudança de município, alteração da denominação, signos, cores, hino etc.). O problema, porém, é que não há obrigatoriedade de o clube permanecer com essas ações, o que significa que elas podem ser alienadas, a ponto de o transmitente perder: 1) parte dos direitos especiais acima referidos, se tais ações deixarem de corresponder a 10%, ao menos, do capital social (artigo 2º, §3º); 2) ou todos eles, se a alienação for de todas essas ações (§4º).
De fato, na sociedade anônima os direitos do acionista estão nas ações ou no percentual delas, não na pessoa de seu eventual titular. Por isso, se as ações classe A forem transferidas a um terceiro (um investidor estrangeiro, por exemplo), com elas irão os mesmos direitos que conferiam ao clube, seu titular anterior. E o comprador, no exercício dos poderes que essas golden shares lhe outorgam, nutrindo mais simpatia pelos resultados de seus investimentos do que pelo time que motivou a criação da SAF, pode transferir a quem escolher, os bens e valores mais caros aos associados e torcedores (hino, cores, contratos com os atletas etc). Sabe-se que a alienação dessas ações não pode ser proibida pelo estatuto, visto que, adotado o modelo do anonimato, não há possibilidade de criar ações inalienáveis; incide, nesse caso, o artigo 36 da Lei 6.404/1976, que só admite restrições à circulação das ações se não impedirem sua plena negociação.
Essas e outras tantas questões, que oportunamente serão abordadas, precisam ser sopesadas para apurar a melhor maneira de tratá-las antes de avançar nesse caminho pedregoso.
* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).