Por Leonardo Marcondes Machado
Muito se tem escrito (e com razão) sobre a necessidade de uma "filtragem epistêmica" da persecução penal brasileira para a justificação de seus "achados fáticos", sem, no entanto, "descuidar do inafastável respeito às garantias processuais" [1].
Essa preocupação, não apenas com a interpretação das normas, senão também com a determinação racional das hipóteses fáticas, sempre a partir da presunção de inocência [2], encontra-se em sintonia com uma perspectiva criminológica crítica de enfrentamento (ou redução) das permanências culturais autoritárias e populistas no campo da justiça criminal, especialmente latino-americana.
O tema, pois, do raciocínio jurídico investigativo está para além de uma simples metodologia de instrução dos casos penais. Trata-se, no fundo, de um instrumento libertário que tem por objetivo limitar as chamadas "penas da investigação", assim entendidas todas as consequências negativas à subjetividade oriundas da estigmatização do lugar de investigado e independentes de eventual processo ou condenação penal [3].
Afinal de contas, como já dizia Carnelutti, "o castigo, infelizmente, não começa com a condenação, senão que começou muito antes, com o debate, a instrução, os atos preliminares, inclusive com a primeira suspeita que recai sobre o imputado" [4].
É justamente na tentativa de mitigar a irracionalidade do sistema penal, desde a sua fase de investigação preliminar, evitando possíveis condenações injustas, seja pelo campo jurídico oficial, seja pela comunidade em geral, que se apregoa a necessidade de um paradigma racional à correta determinação dos fatos na seara criminal.
Nessa linha, inúmeras são as possíveis instâncias de controle epistêmico no inquérito policial, a depender, inclusive, do momento procedimental específico. Tendo em vista, no entanto, a limitação própria desta coluna serão abordados somente alguns exemplos de potenciais filtros epistêmicos que devem ser colocados em prática pelo delegado de polícia na condução de uma investigação criminal.
Sempre lembrando, é claro, que os standards informativos no devido procedimento investigativo criminal também são regidos pelo "princípio político" [5] constitucional da presunção de inocência, o que implica distribuição assimétrica dos riscos em nome da máxima proteção possível da liberdade. Em outras palavras, "esse princípio fundamental de civilidade representa o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado" [6].
A instauração do inquérito, v.g., exige "base empírica para tanto idônea e indicação plausível do fato delituoso a ser apurado" [7]. Ou seja: não é qualquer tipo de notícia supostamente delitiva que justifica a deflagração de um inquérito policial [8]. Menções absolutamente vagas ou hipóteses genéricas de suspeição, muitas vezes atreladas a um modelo de criminalização pessoal, e não factual, devem ser rechaçadas pelo delegado de polícia enquanto garante epistêmico constitucionalmente orientado.
Aliás, depois da Lei nº 13.964/2019, o Código de Processo Penal passou a prever, de forma expressa, no artigo 3º-B, inciso IX, que compete ao "juiz das garantias" o "trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento" [9]. Na mesma linha, a exigir base regular à deflagração de procedimentos investigativos estatais, os artigos 27 e 30 da Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019).
Já quanto ao desenvolvimento dos atos de investigação, a observância da cadeia de custódia assume o status de pressuposto epistêmico à legitimidade procedimental do inquérito policial como substrato informativo do caso penal.
Não por outra razão, sem a devida "história cronológica" [10] dos vestígios ou "rastreabilidade probatória" [11], nos exatos termos dos artigos 158-A a 158-F do Código de Processo Penal, resta comprometida a própria fiabilidade da persecução penal e, por consequência, o poder estatal de arbitramento da responsabilidade criminal.
Logo, incumbe à autoridade policial o dever funcional de zelar pelo cumprimento de todas as etapas da cadeia de custódia dos vestígios criminais, afetas ao inquérito policial, registrando, de modo explícito, qualquer notícia de violação dos procedimentos legalmente estabelecidos, a fim de provocar a análise jurisdicional sobre os seus efeitos no campo probatório processual penal.
E, claro, quanto às decisões próprias do delegado de polícia, não submetidas à cláusula de reserva de jurisdição, demandam igualmente prévia e rigorosa verificação sobre a regularidade da cadeia de custódia no caso concreto, bem como a respeito das consequências (e extensão) de eventual quebra procedimental, a repercutir diretamente na (in)admissibilidade dos elementos informativos e/ou probatórios relacionados à espécie.
Por fim, um terceiro exemplo que pode ser fornecido sobre a necessidade de controle epistêmico do inquérito policial diz respeito ao ato conclusivo de indiciamento.
Sabe-se, com fulcro no artigo 2º, §6º, da Lei nº 12.830/2013, que o indiciamento constitui ato administrativo formal por meio do qual, de maneira fundamentada, mediante análise técnica e jurídica das hipóteses investigadas, o delegado de polícia responsável pela presidência do inquérito procede à valoração racional dos elementos informativos e/ou probatórios em torno da materialidade delitiva e indícios de autoria criminal.
O professor Sérgio Pitombo, inspirado na doutrina francesa, já ensinava que o indiciamento, no inquérito policial, "há de ostentar-se como ato do procedimento, que resulta do encontro de um 'feixe de indícios convergentes' (faisceau d’indices convergents)" [12]. Ou seja, o status de indiciado somente é ocupado pelo investigado após declaração estatal "de que há indicativos convergentes (probabilidade e não possibilidade) sobre sua responsabilidade penal, com os ônus daí decorrentes" [13].
Vale ressaltar que o indiciamento policial não pode ser fruto do simples convencimento pessoal da autoridade responsável pelo caso, e sim uma decorrência lógica jurídica dos elementos validamente produzidos e racionalmente valorados em determinada investigação criminal.
Dito de outro modo, é preciso satisfazer um standard indiciário de probabilidade delitiva, epistemicamente fundado, e não individualmente considerado, para que tenha lugar esse tipo de decisão policial, sem olvidar da garantia fundamental da presunção de inocência.
Não por outro motivo, também neste momento, o estado (racional) de dúvida, sobre a comprovação da materialidade ou a constituição indiciária de autoria/participação, deve ser interpretado em favor do investigado, não havendo margem para brocardos autoritários e populistas como o tal in dubio pro societate.
Isso, é claro, ao menos em um sistema de Justiça Criminal preocupado com o modo de exercício do poder pelas agências penais e, particularmente, com a limitação de possíveis abusos persecutórios.
[1] MATIDA, Janaina; NARDELLI, Marcella Mascarenhas; HERDY, Rachel. A Prova Penal precisa passar por uma Filtragem Epistêmica. São Paulo: Consultor Jurídico, 13 mar. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-13/limite-penal-prova-penal-passar-filtragem-epistemica>. Acesso em: 14.01.2020. No mesmo sentido: ANDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto. En Materia de Prueba: sobre algunos cuestionables tópicos jurisprudenciales. Quaestio facti. Revista Internacional sobre Razonamiento Probatorio, Madrid, v. 1, p. 75-102, 2020, p. 78.
[2] O princípio da presunção de inocência deve ser compreendido como "um componente irrenunciável na organização do processo se se tem em vista que o processo, por um lado, deve caminhar com segurança para um esclarecimento definitivo sobre a questão do fato e da culpabilidade, mas que, por outro lado, pode levar à afirmação de que o acusado é inocente" (HASSEMER, Winfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal. Trad. Pablo Rodrigo Alfen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 221-222).
[3] "(...) A investigação prévia foi tradicionalmente concebida para evitar as penas do processo, contudo, não raras vezes, a própria instrução preliminar tem sido uma pena (e de grandes proporções). Os exemplos são diários, alguns até históricos, e de repercussão nacional ou internacional quanto à desnaturação desse tipo ideal investigativo concebido como filtro humanitário para a justiça criminal" (MACHADO, Leonardo Marcondes. Introdução Crítica à Investigação Preliminar. 01 ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 57).
[4] CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o Processo Penal. Tomo I. Trad. Francisco José Galvão Bruno. Campinas: Bookseller, 2004, p. 36.
[5] CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo Penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal. 06 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 383.
[6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 04 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 506.
[7] STF - Primeira Turma - Inq 3.847 AgR/GO - Rel. Minº Dias Toffoli – j. em 07.04.2015 – DJe 108 de 05.06.2015.
[8] Conforme o Minº Gilmar Mendes, exige-se "justa causa já para a própria abertura do inquérito" (STF - Primeira Turma - Pet 7.354 AgR/DF - Voto Minº Gilmar Mendes - j. em 06.03.2018 - DJe 102 de 24.05.2018).
[9] Muito embora o referido dispositivo legal encontre-se com eficácia suspensa por decisões liminares do Supremo Tribunal Federal (STF - Minº Dias Toffoli - ADI/MC 6298 6299 6300/DF - j. em 15.01.2020 e STF – Minº Luiz Fux - ADI/MC 6298 6299 6300 e 6305/DF - j. em 22.01.2020), serve de exemplo quanto a esse movimento político-criminal de revisão dos pressupostos, fáticos e normativos, para a instauração de inquérito policial à luz da cláusula constitucional do devido processo legal.
[10] MORENO HOLMAN, Leonardo. Teoría del Caso. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Didot, 2015, p. 102.
[11] EDINGER, Carlos. Cadeia De Custódia, Rastreabilidade Probatória. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 120, p. 237-257, mai.-junº/2016.
[12] PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Obra em Processo Penal. São Paulo: Singular, 2018, p. 161-162.
[13] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 05 ed. Florianópolis: EMais, 2019, p. 364.
Leonardo Marcondes Machado é delegado de polícia em Santa Catarina, doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha), especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.