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"O policial tem que ter coragem até para não aceitar ordens que violem direitos humanos", diz Charles Ramsey

Ex-chefe de polícia de grandes cidades americanas e ex-membro da Força Tarefa criada por Barack Obama defende que a corporação estabeleça uma relação de confiança com a comunidade e que a má conduta policial receba punição. Ele participou do 14º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Carlos Nascimento
Por: Carlos Nascimento Fonte: Fonte Segura
12/12/2020 às 12h56 Atualizada em 12/12/2020 às 13h11

Ramsey atuou no comando das polícias de Chicago, Washington e da Filadélfia, nos EUA.

Charles Ramsey é um dos nomes mais respeitados na área de segurança pública dos Estados Unidos. Em seus 47 anos de carreira, chefiou a polícia em três metrópoles americanas – Chicago, Filadélfia e Washington DC.  Foi convidado pelo ex-presidente Barack Obama para comandar uma força-tarefa criada para discutir o policiamento no século XXI. Naquela ocasião, o país vivia um período turbulento de protestos por direito civis em Ferguson, no Missouri, depois que um policial branco matou a tiros um adolescente desarmado.

O nome do veterano policial negro, que teve uma carreira meteórica nos meios policiais, foi escolhido por Obama para coordenar a força tarefa ao lado da professora da Universidade George Mason, Laurie Robinson, uma ex-procuradora-geral-adjunta. Ele tornou-se conhecido introduzir programas inovadores nas polícias que comandou, nos quais deu ênfase ao policiamento comunitário.

Ramsey atualmente preside a Comissão da Filadélfia sobre Crime e Delinquência, a convite do governador da Pensilvânia, Tom Wolfe. Ele é um dos participantes do 14º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e concedeu uma entrevista exclusiva ao Fonte Segura.

Policial com experiência forjada nas ruas, Charles Ramsey é graduado pela Academia Nacional do FBI e possui graduação e pós-graduação pela Lewis University em Romeoville, Illinois. Apesar de ter se associado seu nome ao policiamento comunitário, ele confessa que, inicialmente, tinha dúvidas se essa proposta era eficaz. A seguir, segue a entrevista que Ramsey concedeu para o 14ª Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

P - O policiamento comunitário têm sido uma prioridade em sua carreira, mas isso não é algo que recebe o apoio unânime das polícias, seja nos EUA, ou no Brasil. Estudos nos Brasil frequentemente apontam que a polícia não acredito que isso funciona, ao invés do policiamento convencional. Nesse sentido, como podemos tornar esta estratégia atraente?

R - Quando falo em policiamento comunitário, posso ver como eu mesmo evolui ao longo dos anos. Quando eu era um jovem policial, em Chicago, eu nunca tinha ouvido falar em policiamento comunitário. E quando começou a se espalhar pelos EUA, eu tinha minhas dúvidas, porque eu pensava que era uma abordagem leve para a questão da criminalidade, e que as relações com as comunidades não era um policiamento de verdade. Assim, quando recebi a tarefa de criar um modelo de policiamento comunitário para o Departamento de Polícia de Chicago, eu ainda estava um pouco cético, embora conhecesse um pouco melhor o conceito. Minha dúvida era como operacionalizar isso, como tornar esse modelo realmente efetivo, para que fosse possível não apenas desenvolver relações de confiança fortes e legítimas, o que é um aspecto essencial, mas como também ter um impacto sobre o crime? O que eu encontrei é que as duas coisas andam de mãos dados. Não se trata de fazer uma coisa ou a outra, é possível fazer ambas com um modelo de policiamento comunitário de verdade. Obviamente, as pessoas têm opiniões diferentes sobre estas coisas, mas eu aprendi que sem a construção de relacionamentos, sem termos a confiança e legitimidade concedida por aqueles a quem nós servimos, é muito difícil fazer qualquer outra coisa em termos de policiamento real. Temos esta noção que diz: “Nós não somos assistentes sociais.”. Me desculpe, mas muito do trabalho policial tem a ver com o trabalho de assistência social. Quem é chamada quando temos uma pessoa que está passando por uma crise de saúde mental? A polícia. Se temos uma pessoa que tem problemas com abuso de substâncias, quem é geralmente chamada? É a polícia, já que estamos disponíveis 7 dias por semana, 24 horas por dia, incluindo feriados. É a polícia que é chamada. Nós aprendemos a abordar situações em que talvez uma disputa doméstica acontece. Quem é que tem de ir lá, acalmar os ânimos e resolver a situação? Felizmente, em muitas jurisdições, você pode não apenas resolver a questão naquele momento, mas também pode encaminhá-la para um especialista que dará suporte a longo prazo.

"Assim, não há nada errado em fazer um pouco de trabalho de assistência social. Eu creio que é essencial para sermos eficazes como policiais e como departamentos de polícia.

P - A questão de responsabilização foi um dos principais focos das recomendações feitas pela Força-Tarefa sobre policiamento no século XXI no governo Obama, da qual você foi copresidente. Isto tem permanecido como um tópico importante e controverso desde a força-tarefa, haja visto o número de abordagens letais da polícia, tanto nos EUA quanto no Brasil, especialmente de jovens e homens negros. A responsabilização pode acontecer de várias formas e em vários níveis, assim, gostaria de pedir a você que compartilhasse conosco suas visões sobre as formais mais eficazes e viáveis para aumentar o nível de responsabilização das polícias.

R – Aqui falamos da confiança e legitimidade. A polícia precisa ser responsabilizada para que possamos ter e manter a confiança das pessoas às quais servimos. Elas têm uma enorme responsabilidade em cumprir as leis, defender os direitos constitucionais, e também têm a autoridade para usar a força em certas situações, até mesmo a ponto de tirar a vida de um indivíduo. Quando paramos para pensar sobre isso, não há nada que possa ser mais sério. Como você pode pensar que não deveria ser responsabilizado ou não deveria prestar contar por suas ações? Precisamos ter um sistema em vigor que seja justo, porque policiais têm o direito a um devido processo como qualquer pessoa. Mas a realidade é que eles devem ser responsabilizados por suas ações. Como podemos realizar isso? Educação e treinamento é uma forma de começar. Temos de garantir que os policiais receberam treinamento e equipamentos adequados, mas, quando falo de treinamento, eu não quero dizer alguém na frente de um grupo de policiais lendo textos de uma diretriz, seja ela qual for. Cada vez mais, começamos a usar o que chamamos de “treinamento baseado na realidade” nos Estados Unidos, com a criação de cenários em que os policiais são colocados nestas situações. E o que está sendo testado? É o julgamento deles. Como resolver um problema e acalmar uma situação, por exemplo. Se precisam utilizar a força, qual o tipo de força? Será que é necessário? Será que é razoável? Será que é proporcional? Assim, começamos a treinar as pessoas de forma consistente com o que o público espera deles. E isto envolve o fato de os policiais entenderem sua autoridade e uso da força, mas apenas como último recurso. Se fizerem isso, deve ser de forma apropriada para lidar com essa situação em particular. Além de treinamento e educação, é necessário garantir a existência de um processo para uma investigação justa, objetiva e razoavelmente rápida do incidente. Meu viés aqui seria o de que esta deve ser feita por outro departamento, que não seja o departamento do policial envolvido. Isso não significa que o departamento não é capaz de conduzir uma investigação cuidadosa, mas como fica a percepção do público? É necessário ter fé nos resultados. Eu também sou a favor da supervisão civil. Nós trabalhamos para as pessoas. Ter a supervisão civil, com alguém que tem participação em suas políticas, em seus procedimentos, em seus processos disciplinares. Estes são todos aspectos críticos que devem estar em vigor para a construção de confiança e legitimidade perante ao público que servimos. Desta forma, a responsabilização é essencial. Há formas de se alcançar isso, mas eu acredito que sempre será um desafio, em relação a certificar-se de fazer o possível para que as pessoas entendam os desafios que os policiais enfrentam. Eles são seres humanos e cometem erros. A pergunta é se trata-se de um erro honesto ou se é algo que indica uma questão ou problema muito maior, em relação a um policial. Também não devemos negligenciar o recrutamento e contratação. Precisamos garantir que estamos trazendo para os departamentos as pessoas com a mentalidade certa, com a personalidade certa para serem policiais eficazes no século XXI. Precisamos de profissionais com boas capacidades de comunicação e que consigam interagir com pessoas, e tenham a coragem de lidar com as situações bastante perigosas que os policiais precisam lidar. Elas também devem ter um outro tipo de coragem, que se trata de intervir quando encontrarem um outro policial fazendo algo inapropriado, e impedir essa ação. Sendo honesto, a complexidade do policiamento é hoje, provavelmente, maior do que nunca. Mas precisamos ser capazes de encarar este desafio. Tudo é gravado em um vídeo hoje em dia e isso tem um impacto enorme sobre a percepção das pessoas sobre o policiamento. Precisamos entender isso e fazer nosso trabalho de forma apropriada. Também não podemos nos esquecer do fato de que, enquanto policiais, não temos apenas a obrigação de prender pessoas que comentem crimes:  temos a obrigação de proteger os direitos de todas as pessoas, incluindo aquelas que prendemos.

"Também não podemos nos esquecer do fato de que, enquanto policiais, não temos apenas a obrigação de prender pessoas que comentem crimes:  temos a obrigação de proteger os direitos de todas as pessoas, incluindo aquelas que prendemos.

P - A responsabilização tem sido bastante mencionada na mídia no último ano, mas outro ponto relevante se refere aos sindicatos policiais, que resistem contra as medidas de responsabilização que os departamentos de polícia querem instituir. Como lidar com a presença de sindicatos em departamentos de polícia em relação a essa questão da responsabilização?

R - Quero começar dizendo que não sou contra os sindicatos, embora acredite que eles se tornaram muito poderosos em muitas jurisdições. E eles têm uma tremenda influência em relação ao que você pode fazer, em relação à capacidade do chefe de polícia de administrar um departamento de polícia, e em relação à responsabilização dos policiais. Eles se tornaram excessivamente fortes e poderosos. Agora, é culpa deles apenas? Não, quando observamos os governos municipais, tendo em mente que estou falando da perspectiva nos Estados Unidos, que é aquela que conheço. As cidades abriram mão de seus direitos administrativos para tudo quanto é lado, por anos a fio. E hoje pagamos o preço. Quando observamos alguns aspectos contratuais, por exemplo: eu já tive que demitir policiais que se envolveram em falhas graves de conduta, por mais de uma vez. Ou seja, demiti uma vez, eles passaram por arbitragem, voltaram ao trabalho, então cometeram falhas tão graves quanto as primeiras, e precisei demiti-los novamente. Felizmente, eles não voltaram pela terceira vez, embora em um caso isso quase aconteceu. Sabe, nem todos são adequados para o trabalho de policial. Pode não ser o caso de uma infração penal, mas estas pessoas não são adequadas para trabalhar como policiais, e não precisamos deste tipo de indivíduos. Hoje chegamos a um ponto de vermos esta mentalidade que defende que não existem maus policiais. Não importa o que você faça, eles continuarão a defender este indivíduo. Novamente, eu não sou contra as pessoas terem o acesso a uma boa defesa, todos têm o direito a uma boa defesa. Mas chega uma hora que essa pessoa precisa encontrar outra área de trabalho, e fica cada vez mais difícil administrar um departamento e responsabilizar as pessoas. Isso não acontece apenas com a polícia. Quando observamos os procuradores, digamos que um de seus policiais se envolveu em uma troca de tiros,  você começa a fazer a investigação, mas, automaticamente, você deve enviar o caso ao promotor ou Procuradoria Estadual, para saber as acusações criminais serão feitas. Com isso, qualquer investigação administrativa é suspensa, devido às regras de Garrity e outros direitos, até que um Termo de Renúncia seja assinado, ou uma decisão de prosseguir com o processo criminal. Eu já passei por situações nas quais foram necessários dois anos, ou mais, para conseguir um Termo de Renúncia ou qualquer outra decisão da Procuradoria. Dois anos! Não foram necessários dois anos para elaborar o relatório do 11 de Setembro. Isso é ridículo. E qual é o resultado? Isso corrói a confiança que temos com a comunidade. Assim, temos que olhar para o sistema de justiça criminal. Quando falamos de reforma, tendemos a falar de reforma policial, mas temos que olhar para todo o sistema de justiça criminal. Essa foi a primeira recomendação que fizemos no relatório da Força-Tarefa organizada por Obama. Recomendamos que uma comissão fosse feita para observar todo o sistema de justiça criminal, e isso não era feito desde que Lyndon Johnson foi presidente, nos anos 60, acho que em 1964 foi a última vez que isso foi feito.

P - Tanto o Brasil quanto os Estados Unidos são sistemas federativos, nos quais as jurisdições primárias para as polícias estão em nível local. Nos Estados Unidos está em nível municipal e no Brasil, estadual. Mesmo assim, existem inúmeras formas, especialmente nos Estados Unidos, com a interação ocorrendo entre níveis federais, estaduais e municipais, em nível local. Eu acho que isto pode ser positivo e negativo. Acho que pode ser positivo, talvez, durante algumas administrações nos Estados Unidos, com o uso de decretos de consentimento federal emitidos pelo Departamento de Justiça, que serviram como bons recursos para encorajar a responsabilização, mas nem sempre funciona assim em todas as administrações. Por outro lado, a transferência de equipamentos de tipo militar do Departamento da Defesa, nos últimos anos, para departamentos de polícia locais tem levado a algo chamado por muitos de militarização da polícia, especialmente nos EUA. Você poderia falar sobre esta relação federal-local e quando pode ser positiva e quando pode ser problemática?

R - Bom, é positiva em muitas formas. Eu apenas trabalhei em cidades grandes: Chicago, Washington D.C e Filadélfia. A maioria das interações em nível federal se dá por forças-tarefa, como força tarefa com o FBI, com a Agência de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos, ou a Administração e Fiscalização de Drogas, ou a Força Tarefa conjunta contra Terrorismo. É assim que a maior parte da interação acontece. Em algumas situações, temos casos que são levados às instâncias federais, mas a maior parte das interações acontece através de força-tarefa. Isto é muito valioso, pois eles podem trazer os melhores recursos que, em muitos casos, você simplesmente não tem a nível local. Então, é muito positiva neste sentido. Você mencionou os decretos de consentimento. Quando você tem uma agência que demonstra um padrão na prática de abuso de direitos dos cidadãos, uso inapropriado de força, e outras ações similares, observe este departamento, faça recomendações, leve o caso para a justiça federal, e assim este departamento pode ser submetido a um decreto de consentimento. Eu sou membro da equipe de monitoramento em Baltimore, Maryland, e em Cleveland, Ohio, então eu estou bastante familiarizado com isso. Mas havia uma outra forma pela qual um departamento de polícia podia passar por uma avaliação externa de suas operações, que era a forma colaborativa que a administração atual nos EUA encerrou, o que eu acredito ter sido um erro. Era uma forma pela qual o Departamento de Justiça poderia vir, no caso eu solicitei que viesse a Filadélfia. Eles observavam as operações e faziam recomendações muito similares àquelas feitas em um decreto de consentimento. Mas os tribunais federais se envolviam. Estas são as formas para uma tentativa voluntária de fazer mudanças, já que, às vezes, quando você está em um departamento, você não consegue ver as coisas que deveria, porque você está muito próximo de tudo. Assim, ter esta perspectiva externa é algo muito valioso. Em relação ao programa 1033, que foi o programa utilizado para o governo federal fornecer equipamentos militares para departamentos de polícia, existem alguns equipamentos militares que não acredito que as polícias realmente necessitem, mas há alguns que sim. Eu acredito que fizemos um trabalho ruim em explicar ao público por que precisamos deste tipo de equipamento. Por exemplo: durante o policiamento um policial pode ser enviado para uma chamada de uma simples perturbação. Apenas uns jovens vadiando em uma esquina de uma rua. Então, algumas pessoas ficam incomodadas e ligam para a polícia. Ou, é possível que o policial seja enviado para um tiroteio em andamento. Infelizmente, tivemos inúmeras situações em que tivemos tiroteios em escolas, em shoppings, em igrejas. É um fato muito infeliz, mas é uma realidade. Diferentes tipos de chamadas e de respostas, mas as ferramentas necessárias para a resolução serão bastante diferentes. Eu acredito que é importante demonstrar a necessidade real de se ter um equipamento específico. Em segundo lugar, é preciso conseguir demonstrar políticas rígidas em vigor em relação a quando este tipo de equipamento pode ser empregado, em qual circunstância pode ser empregado. E você também deve conseguir demonstrar que tem um programa efetivo de treinamento. Assim, os policiais estarão bem treinados em relação a como e quando usar estes equipamentos.

"E você também deve conseguir demonstrar que tem um programa efetivo de treinamento. Assim, os policiais estarão bem treinados em relação a como e quando usar estes equipamentos.

P – Pode nos dar um exemplo?

R - Falarei de um caso que aconteceu há alguns anos, em que tivemos tiros envolvendo um policial, um caso bastante controverso, tivemos pessoas que reuniram e fizeram grandes manifestações. Quando observamos a resposta da polícia, eles trouxeram um veículo blindado, e tinham um policial na parte de cima do veículo blindado segurando um rifle com mira telescópica, mas era uma manifestação pacífica. Por que então levar isto para as ruas? Não havia tumulto nem a menor necessidade para tanto. Totalmente inapropriado. Na realidade, este incidente fez com que as pessoas se conscientizassem sobre o que estava acontecendo. Assim, há essa ideia de militarização, e eu entendo o que muitos alegam com isso, mas acho que deve existir uma compreensão da variedade de respostas e responsabilidades que a polícia tem e qual tipo de equipamentos e ferramentas são necessárias para efetivamente lidar com as situações. Isto deve ser justificado, deve ser monitorado, precisamos de políticas rígidas e bons programas de treinamento, mas eliminar completamente creio que é um erro. Porque assim a cidade terá de comprar, já que às vezes estes equipamentos são necessários. Então, a pergunta é se estes equipamentos seriam obtidos de graça com o governo ou se pagaria por eles? E acredito que quando o governo federal dá estes equipamentos, eles monitoram e auditam o uso. Verificam periodicamente para garantir que você ainda tem o equipamento, e que está sendo utilizado. Acho que em alguns casos nem todos os departamentos precisam de alguns destes equipamentos. Algumas delegacias menores provavelmente estariam melhores como estão, mas existirão situações em que esse material será necessário.

P - Gostaria de abordar a questão das novas tecnologias disponíveis para a polícia hoje. Elas podem ser controversas, como, por exemplo, câmeras corporais, que a força-tarefa descreveu como uma ferramenta complexa que pode ter efeitos negativos para o relacionamento entra a polícia e comunidades. Similarmente, temos o uso mais recente de tecnologias de reconhecimento facial. Algo controverso em vista dos impactos sobre a privacidades dos indivíduos.

R - Em primeiro lugar, se observarmos o relatório da força-tarefa, publicado em 2015, nós gastamos um pouco de tempo falando sobre as câmeras corporais, a nova tecnologia naquele momento, mas não quisemos gastar muito tempo nesta discussão, enquanto tivemos nossas deliberações. O motivo é que as câmeras corporais são a tecnologia de hoje; amanhã teremos outra nova tecnologia sobre a qual teremos de nos posicionar. O que é realmente importante para as tecnologias dadas aos policiais? Uma das conclusões à qual podemos chegar é como a tecnologia é utilizada pelos policiais e como é garantido que seja utilizada dentro de uma estrutura constitucional para que, seja qual for a tecnologia em questão, possamos levar em consideração os impactos sobre a privacidade, direitos individuais e assim por diante. E, aliás, estas discussões devem ser feitas antes, e não após a aquisição.  E devemos convidar associações pelas liberdades civis, Ordem dos Advogados, Organizações Comunitárias, assim como profissionais de polícia, para participar destas discussões. Só porque você pode fazer algo não significa que você deve fazer isso. Existem algumas tecnologias que talvez não sejam ideais para o uso da polícia hoje e, se você vai utilizá-las, deve garantir que tem as políticas, treinamentos e proteções adequadas para que não seja passível de abuso. Acho que este é o real foco que precisamos ter quando lidamos com tecnologia. A tecnologia pode ser uma multiplicadora de forças quando lidamos com crimes e distúrbios. Eu sou absolutamente a favor da tecnologia, mas sou a favor do uso adequado da tecnologia, que já foi comprovada como eficaz. Você mencionou o reconhecimento facial. O reconhecimento fácil poderia ser útil, mas hoje ainda não está pronto para ser levado às ruas, em minha opinião, já que há muitos casos falso-positivos. Isto não significa que não podemos chegar a um ponto em que possa ser útil. Mas ainda não está pronto neste momento. A outra questão, em relação aos dados, dados que são coletados regularmente. É fácil alimentar esses bancos de dados, mas não é tão fácil obter informações relevantes deles. Estamos coletando muitas informações: leitores de placa de carro, por exemplo, que leem a placa do carro parado ou em movimento e fazem uma varredura para verificar se foi roubado, etc. Esta tem sido uma ferramenta valiosa. Mas por quanto tempo estas informações devem ser mantidas num banco de dados? Porque para cada erros em situação ilegal que você encontra, você faz a varredura de centenas de carros de pessoas que não fizeram nada de errado. Assim, devemos ter políticas em vigor que, a menos que exista alguma associação à atividade criminosa, nos façam apagar as informações para que não possam ser mais recuperadas. Estas são proteções, aspectos que devemos garantir antes de começarmos a usar qualquer tecnologia em particular. E se não definirmos isto para nós mesmos, se não criarmos estas políticas, alguém fará isto por nós. E, provavelmente, isto limita nossa capacidade de sermos beneficiados por esta tecnologia. Assim, eu creio que é importante termos estas discussões e chamarmos as pessoas certas para mesa, e não discutirmos isso apenas entre chefes de polícia. Precisamos ter discussões e debates sérios a respeito deste tema. A tecnologia está ao redor de todos nós, não há como escapar, realmente. Não é diferente para a polícia. Mas devemos pensar sobre o que estamos fazendo, como estamos usando, quais políticas implementamos, que treinamento oferecemos, e assim por diante. Então, devemos tornar isto transparente.

Fazer com que as pessoas em nossas comunidades saibam exatamente o que estamos fazendo: quais são as políticas, qual é o treinamento, por quanto tempo os dados são retidos. Se fizermos isso, podemos extrair o melhor de ambas as coisas.

P - Há uma outra questão que gostaria de apontar, que diz respeito ao Brasil e aos Estados Unidos. Em ambos os casos, líderes nacionais defendem formas de policiamento que dão permissão para abusos de direitos humanos, o que cria oportunidades para a prática destes abusos em nível nacional. Por exemplo, a permissão para um policiamento de “lei e ordem” quando um departamento local de polícia talvez não seja adepto desta visão, ou a permissão para o desrespeito às medidas de controle de armas de fogo. Como lidamos com esta desconexão entre o que está acontecendo, o que está sendo dito em nível federal, e o que os departamentos locais de polícia querem fazer?

R - Mais cedo falamos sobre diferentes tipos de coragem. Uma coisa é ser capaz de enfrentar um indivíduo armado, e outra é ter coragem de intervir quando se vê algo que não é apropriado, não é correto. Bem, também é necessário ter coragem para ignorar e não seguir certas ordens que violam os direitos dos cidadãos. Nos Estados Unidos, a constituição não declara uma exceção para a polícia, como se os direitos constitucionais fossem válidos para todos, exceto para a política. Policiais devem entender que também têm estes direitos constitucionais. Logo após o 11 de setembro, vimos esforços para identificar pessoas, muçulmanos, por exemplo, como se, de alguma forma, deveríamos prestar atenção neles, já que tivemos os ataques terroristas. Não se pode fazer este tipo de coisa, veja, é totalmente contrário àquilo que o nosso país, os Estados Unidos, defende. Eu não me importo se é o presidente dos Estados Unidos, se é o procurador geral, se é o prefeito, se é o chefe de polícia falando para nós, seus policiais. Se o que ele está pedindo para fazermos é algo inconstitucional, se isto seleciona indivíduos de forma injusta, para serem tratados diferentemente de outros, isto está completamente errado, e não é uma ordem que deve ser seguida. Eu gosto de mencionar algo que costumava dizer quando falava com meus policiais: “Todos nós fazemos um juramento, existem diferenças, mas são bem similares; não fazemos um juramento de proteger apenas a vida, propriedade e assim por diante.  Nós também fazemos um juramento de proteger os direitos constitucionais das pessoas.” Quando paramos para pensar nisso, e perguntarmos ao policial comum: “Qual o papel da polícia na sociedade democrática?”  A maioria, infelizmente, deve dizer: “Fazer cumprir as leis.” Primeiro, esta é uma parte muito limitada de tudo o que fazemos. Mas, imagine por um momento, se fizéssemos esta pergunta e o policial dissesse: “Proteger os direitos constitucionais de todas as pessoas.” Se essa fosse a primeira resposta, será que teríamos as dificuldades e problemas que temos hoje em relação ao policiamento nos Estados Unidos? Acho que não. Então, temos que levar isso adiante. Temos que garantir que as pessoas entendam isso. Quando tivemos manifestações na Filadélfia, alguns anos atrás com o Occupy Filadélfia, tivemos uma força policial destacada, por 3 ou 4 meses. Todas as reuniões iniciais, no início de cada turno, começavam da mesma forma: nós líamos a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos para todos na sala. As pessoas têm o direito de se manifestar, elas não são seus inimigos. Elas têm esse direito. Não podem destruir a propriedade, mas eles têm o direito de estarem lá. Elas tinham direito de entender isso, nós líamos todos os dias, como um lembrete sobre os direitos constitucionais que as pessoas têm. Talvez você não concorde com o que eles defendem, talvez você não concorde com uma causa específica. Tudo bem. Mas seu trabalho é proteger o direito delas de poderem exercitar esta liberdade, porque acho que não damos o devido valor a muitas coisas nos Estados Unidos. Sim, estamos passando por uma época e um ambiente desafiadores. Mas a polícia, enquanto profissão, deve tomar uma posição e estar contra qualquer coisa que leve nossa democracia para a direção errada.

P - Há algo mais que gostaria de acrescentar nesta entrevista?

R - E eu trabalhei como policial por 47 anos. Comecei em Chicago, nasci lá, e iniciei em 1968 como um cadete da polícia. Ao longo dos anos, vi muitas mudanças acontecerem, mas ainda acredito na profissão, acredito no policiamento, ainda acredito nas pessoas, ainda acredito que podemos tornar nossa sociedade mais forte e melhor. Estamos passando por um momento difícil e desafiador, mais desafiador do que qualquer outro momento que vi em meu tempo de serviço. Mas nós vamos passa por isso e vamos sair melhores e mais fortes. Apenas mantenham a fé e continuem em frente.

Elizabeth Leeds

Presidente de honra do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Pesquisadora Associada do Centro de Estudos Internacionais do MIT (Massachusetts Institute of Technology.

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