O aprimoramento das políticas públicas de segurança, desde a definição da agenda até a avaliação das ações implementadas, depende da qualidade das informações disponíveis sobre violência. Em relação aos homicídios, o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) é historicamente a principal fonte de dados, por ter abrangência nacional, consistência e confiabilidade metodológica - como aponta a edição 2020 do Atlas da Violência, publicação elaborada pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e que em 2021 contou com a participação do Instituto Jones dos Santos Neves.
Com essa base de dados é possível calcular taxas de homicídios de modo a compreender o perfil, a evolução, os determinantes e os efeitos do fenômeno sobre grupos populacionais mais vulneráveis, bem como avaliar os impactos de políticas públicas para a preservação da vida. No entanto, o recente aumento das mortes violentas por causa indeterminada (MVCI) no Sistema de Informações de Mortalidade reduz o conhecimento sobre a realidade atual e, em um estudo como este, entre outras coisas, prejudica a comparação com anos anteriores e a verificação da situação nas Unidades Federativas.
A categoria “Mortes Violentas por Causa Indeterminada” é utilizada para os casos de mortes violentas por causas externas em que não foi possível estabelecer a causa básica do óbito, ou a motivação que gerou o fato, como sendo resultante de uma lesão autoprovocada (suicídio), de um acidente (inclusive de trânsito), ou de uma agressão por terceiros ou por intervenção legal (homicídios). Os estudos mostram que as MVCI abrigam óbitos por homicídios não registrados como tal.
Nesse sentido, gera preocupação na edição 2021 do Atlas da Violência o crescimento da proporção das MVCI em relação ao total de óbitos por causas externas. Essa proporção, após cair por um período de mais de quinze anos e alcançar 6,0% em 2014, começou a subir, atingindo 8,2% em 2018 e 11,7% em 2019. Um crescimento brusco das mortes por causa indeterminada decorrentes de lesão provocada por violência é bastante preocupante e indica perda de acurácia das informações do sistema de saúde.
Este fato, além de revelar a piora na qualidade dos dados sobre mortes violentas no país, permite também levar a análises distorcidas, na medida que pode indicar subnotificação de homicídios. Estudo produzido pelo pesquisador Daniel Cerqueira, um dos coordenadores do Atlas da Violência, estimou que, em média, 73,9% das mortes por causas indeterminadas registradas no Brasil entre 1996 e 2010 eram na verdade homicídios ocultos.
A situação é mais grave no Rio de Janeiro, onde as MVCI representaram, em 2019, 34,2% das mortes por causas externas; seguido por São Paulo (19,0%) e Ceará (14,5%). Apenas de 2018 para 2019, houve no Brasil um crescimento de 35,2% no número de mortes violentas por causas indeterminadas, sendo esse aumento de 232% no Rio de Janeiro, 185% no Acre e 178% em Rondônia.
Brasil: Proporção de Mortes Violentas por Causa Indeterminada em Relação ao Total de Óbitos de Causas Externas (1996 a 2019).
A dimensão do problema também pode ser vista quando se comparam as taxas de homicídios e as taxas de MVCI por 100 mil habitantes, que, no Brasil, são respectivamente 21,7 e 7,9. Merecem destaque os casos de São Paulo e do Rio de Janeiro, em que as taxas de MVCI – 9,0 e 28,3 respectivamente – superam as de homicídios – 7,3 e 20,3 – em 23% e 34,4%, respectivamente. O crescimento das MVCI afeta as análises realizadas no Atlas. Houve crescimento considerável de MVCI de 2018 para 2019 em variáveis relacionadas a diferentes tópicos do estudo, alcançando 57,4% no caso da juventude. No entanto, é em relação aos homicídios das mulheres que o impacto pode ser maior, pois, em 2019, para cada mulher vítima de homicídio, havia uma mulher vítima de MVCI.
Brasil: razão de número de MVCI por Homicídios e Crescimento das MVCI por Variáveis Selecionadas (2018 e 2019).
Esse aumento das MCVI, juntamente com a melhoria dos dados produzidos pelas secretarias de segurança pública na última década, fez com que, pela primeira vez, as mortes violentas por causas intencionais (47.742) (FBSP, 2021) superassem os homicídios calculados a partir do SIM (45.503). Um maior número de registros pelos órgãos de segurança pública ocorreu em 9 UFs.
No Rio de Janeiro, os dados de homicídios do SIM são 40,6% menores que os registros de mortes violentas intencionais dos órgãos de segurança pública, e em São Paulo, 17,5%. Em suma, o crescimento das mortes violentas por causa indeterminada dificulta uma melhor compreensão da evolução da violência letal no Brasil.
Pela dimensão desse crescimento, não está invalidada, por exemplo, a conclusão de que houve uma queda da taxa de homicídios no Brasil em 2019, mas reduz-se a precisão da magnitude dessa diminuição. Além disso, os homicídios não computados também podem afetar os resultados de outras variáveis, reduzindo o nível de confiança das análises sobre juventude, homens e mulheres, negros e não negros, pessoas indígenas e homicídios por armas de fogo.
* Texto originalmente publicado no Atlas da Violência 2021.