Por Richard Gomes
Quando se aborda o novo modelo de arquivamento do inquérito policial com a entrada em vigor da Lei nº 13.964/19, conhecida ordinariamente como pacote "anticrime", uma das questões é o papel do juiz e do Ministério Público. O tema perpassa pela autonomia do Parquet em si, que, entendendo pelo arquivamento do procedimento investigativo, comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e ordenará internamente o arquivamento do inquérito policial encaminhando os autos a instância de revisão ministerial para fins de homologação.
No que tange ao juiz, não cabe mais ao Poder Judiciário exercer qualquer espécie de controle, a previsão está no artigo 28 do Código de Processo Penal, que passa a dispor desse modo [1]. Assim, por exemplo, na hipótese de haver manifestação de discordância do arquivamento, resta ao interessado recorrer apenas em instância competente do próprio órgão ministerial, em inquestionável inovação normativa que consolida a natureza administrativa do inquérito.
Consideremos, entretanto, que há uma repercussão negativa da inovação legislativa. Ao nosso ver, porém, enfrentável e superável. Proclamam que a preservação da sistemática anterior, que submetia o arquivamento ao crivo judicial, e permitia o juiz considerar improcedentes as razões invocadas, é a preservação dos direitos individuais e inafastabilidade da tutela dos cidadãos. Adicionam, além disso, que a recente sistemática legal prevê a remessa do inquérito ao juiz das garantias, aspecto que, por suposição impede proclamar a parcialidade do julgador em posterior julgamento do processo.
O diagnóstico sobre o tema, no entanto, vai além da impossibilidade de o magistrado discordar do ato ministerial. Passa pela estrutura e funcionamento do ato administrativo de arquivamento de inquérito. E, portanto, vamos aos fundamentos. Parcela expressiva da doutrina e jurisprudência afirma que o inquérito tem natureza administrativa [2], sob o prisma de que dele não advém a imposição direta de nenhuma sanção, inexiste estrutura processual dialética que garanta o contraditório e a ampla defesa, e a carência de uma ordem rígida para a execução de atos [3], embora acentuamos que na práxis criminal nos deparamos com uma sequência lógica para sua instauração nas delegacias, como: 1) elaboração do boletim de ocorrência; 2) instauração mediante portaria; 3) registro em livro cartorário e autuação pelo escrivão de polícia; 4) termo de juntada do escrivão de polícia do boletim de ocorrência e demais peças noticiadoras do fato; 5) expedição de ordem de serviço à inspetoria para apuração do delito; 6) requisições periciais; 7) intimações para oitivas em cartório de vítima, testemunhas e investigado etc.
É verdadeiramente espantoso que, quando se aborda a natureza jurídica do inquérito, desconsiderem que tal não se confunde com a natureza jurídica do arquivamento do inquérito. Para encurtar, antes da inovação legislativa, quando o legislador envolve o arquivamento do inquérito ao prévio requerimento formulado pelo órgão do Ministério Público, e posterior decisão da autoridade judiciária competente, na teoria do Direito Administrativo está declarando implicitamente que o arquivamento do inquérito é um ato complexo, que é aquele em que se exige mais de uma manifestação de vontade e acontece em órgãos diferentes, embora em patamar de igualdade [4]. Vejamos um exemplo expressivo de ato complexo. A indicação para ministro do STF, em que a escolha se inicia pelo presidente da República; passa por aferição do Senado Federal; e culmina com a nomeação pelo presidente (artigo 101, parágrafo único, CF). Logo, é formado por duas manifestações de vontade em órgãos distintos.
Retomando momentaneamente a questão, se a natureza jurídica do inquérito é administrativa, a repercussão da decisão de arquivamento deve restringir-se a esfera administrativa. Ora, quando o órgão ministerial solicita posterior decisão da autoridade judiciária, resta considerar, portanto, que o arquivamento também é feito por decisão jurisdicional proferida por autoridade decisória. Sendo certo que, na hipótese do arquivamento decorrer também de manifestação do juiz, isso corresponde que o arquivamento compõe-se de certa orientação judicial, porque expõe que o juiz se convenceu ou não de algo na decisão.
Nessa ocasião, o juiz não vê ali demonstrado o acontecimento ou se expressa pela subsistência de determinado fato, elementos indicativos da autoria que justifique a denúncia. Nesse instante, revela-se uma decisão que repercute efeitos equivalentes à decisão de impronúncia que, a rigor, é um decisão com fundamento na ausência de provas da existência do fato, bem como de elementos indicativos da autoria. Rigidamente, não se pode negar raciocínio análogo, até mesmo porque em ambos os casos, enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, a impronúncia e o arquivamento permitem que nova denúncia ou queixa seja oferecida se houver nova prova.
Quanto ao futuro que vai se seguir com a mudança significativa inserida no artigo 28 do CPP, reputa-se que o arquivamento do inquérito passa a ser ato administrativo composto, não mais ato administrativo complexo. Isso porque embora permaneça dependendo de mais de uma manifestação de vontade, agora acontecerá dentro do mesmo órgão, sendo a primeira manifestação a principal e a segunda mera exteriorização secundária. Ou seja, o legislador aproxima a natureza do arquivamento com a estrutura do inquérito em si.
É surpreendente quando se depara com uma crítica a nova redação artigo 28 do CPP, tal qual se vê na de que a alteração legislativa carrega evidente violação ao princípio da presunção de inocência. Não há como concordar. No caso em pauta, houve alteração da natureza jurídica do arquivamento do inquérito de ato complexo para ato composto, e a concepção apropriada é que aqui acontece o chamado "efeito prodrômico", que é exatamente o poder que o primeiro ato tem de exigir a prática do segundo ato, reivindicando a quebra de inércia da autoridade [5]. Admitimos que de fato a mudança normativa empresta premissa similar a remessa necessária, e replicamos apontando que remessa necessária não é recurso e o que há de respeitável na nova normativa é que o arquivamento deixa de ter manifestação de inconformismo do Judiciário.
Não merece florescer a crença por parte dos pessimistas fincada na falsa premissa de que o novo modelo é inconstitucional porque evidente violação ao princípio da presunção de inocência. O que acontece não é isso. O "efeito prodrômico" transcorre quando um ato administrativo depende de duas manifestações de vontade, e havendo a primeira, gera a necessidade da segunda, é isso que se verifica no agora ato composto de arquivamento do inquérito, porque sobrevirá situação de pendência enquanto o segundo ato não for proferido. Ilustrando. A autoridade X do Ministério Público edita um ato de arquivamento do inquérito. Apesar disso, para esse ato produzir seus efeitos, é necessário que a autoridade Y o controle. Por consequência, a autoridade Y emitirá um ato que funciona como idêntico raciocínio a condição de eficácia do ato emitido pela autoridade X. Nesse interregno, subsiste uma situação de pendência enquanto a análise do primeiro ato não é efetuada, e tal conjuntura é denominada de "efeito prodrômico".
A nova regra do artigo 28 do CPP, portanto, aproxima o sistema processual penal brasileiro do sistema acusatório, para tanto torna única a natureza jurídica do arquivamento e do inquérito. Acentua-se, ainda, que a alteração visa a dar racionalidade, unicidade ao tema, objetivando concretizar o melhor direito. Ilustro um exemplo. Na investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia [6], do despacho que indeferir o requerimento de abertura de inquérito (CPP, artigo 5º § 2º) caberá recurso para o chefe de polícia, que a depender da localidade será o delegado geral ou o secretário de segurança pública. Nesse sentido, a atividade integra tão somente um sistema administrativo porque o chefe de polícia estará gerindo e exercendo um controle técnico dos trabalhos do corpo funcional. Perceba que o funcionamento da abertura do inquérito funciona numa organização interna, exclusivamente administrativa, havendo um meio para controlar e corrigir ações internamente.
Fica evidenciado, portanto, o fortalecimento da natureza administrativa do inquérito quando se considera que se o procedimento destina a munir o Ministério Público (que é o titular da ação penal), só a ele pertence pedir o seu arquivamento.
[1] "Artigo 28 - Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei".
[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único I - 5. ed. rev. Ed. JusPodivm.
[3] Lima, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado - 2. ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm.
[4] Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo – 33. ed. – São Paulo: Atlas.
[5] ROSSI, Licínia. Manual de direito administrativo – 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação.
Richard Gomes é advogado.