Recentemente ganhou destaque o caso do delegado Da Cunha, da Polícia Civil de São Paulo, que é amplamente conhecido nas redes sociais pelas transmissões de operações policiais em tempo real; porém, ele está sendo acusado de forjar tais ações a fim de conquistar seguidores, visualizações e curtidas. O referido delegado não está sozinho no ramo de influenciador digital. Aliás, hoje é comum ver policiais exibindo armas, uniformes, viaturas, operações em seus perfis privados. Todavia, até que ponto é ético esse uso personalíssimo de distintivos das polícias nas redes sociais?
Não é novidade a exploração sensacionalista das atividades policiais. Afinal, filmes, séries e reportagens, há tempos, imprimem o arquétipo do mundo policial; sendo ele repleto de desafios com oficiais envoltos em investigações, operações, prisões de criminosos, trocas de tiros. Por conta disso, têm repercussão programas policiais no estilo reality show, como Polícia nas Ruas, Polícia 24 horas. Destaca-se que tais programas eram exibidos basicamente pela televisão; hoje, ganham projeção nas redes sociais, com milhares de seguidores e visualizações.
No entanto, há uma diferença intrigante entre os programas de big brother policial e os policiais influenciadores digitais. Enquanto os primeiros tinham objetivo mais voltado para a promoção das corporações, os segundos são orientados sobremodo para ganhos pessoais. Ou seja, os policiais influencers, embora revestidos das estruturas das polícias, agem em nome próprio. Com efeito, é comum ver tais personagens mesclarem conteúdos de suas atividades policiais no combate à criminalidade com outras de cunho pessoal; por exemplo, ajuda a orfanatos, distribuição de cestas básicas, ida ao mercado. Desse modo, os policiais influencers, retradados como pessoas comuns com amigos, familiares e cachorros, apesar da árdua missão policial, mostram seu cotidiano.
Na condição influencer, o policial procura manter ativos seus canais nas redes sociais – sejam Facebook, Instagram, TikTok, Twitter, YouTube. Com efeito, aplica-se o receituário das sumidades na internet: espaços alimentados frequentemente com conteúdos novos e chamativos, contendo fotos e filmagens de qualidade. Nessa empreitada, destaca-se o delegado Da Cunha. Ele contabiliza mais de 3 milhões inscritos no Youtube e cerca de 2 milhões de seguidores no Instagram, com centenas de conteúdos postados. Por isso, suspeita-se que ele tenha monetizado seus canais, tendo em vista a expressiva quantidade de seguidores e visualizações que vem obtendo. Só no YouTube, por exemplo, ele já supera a marca de 300 milhões de visualizações, no acumulado.
É claro que nem todo policial que usa as redes sociais para postar fatos, fotos e vídeos com as estruturas de suas corporações chega ao status de influenciador digital do delegado Da Cunha. Não obstante, seja para poucos ou para milhares de seguidores, o uso de insígnias das polícias por seus integrantes nas redes sociais parece não ser condizente com a finalidade pública. Afinal, o objetivo do distintivo policial não é favorecer aquele que ora se encontra com ele, mas representar o poder de polícia do Estado. Entretanto, em geral, os policiais que usam as searas digitais agem ao contrário, porquanto almejam de alguma forma promoção pessoal.
A ostentação de armas e viaturas no transcurso de operações policiais – em regra, com fotografias em primeiro plano – sugere que o policial influencer ocupa uma posição individual de controle da criminalidade. Em virtude disso, é comum verificar policiais ativos nas redes sociais usarem esse capital para alçar outros voos, sobretudo no campo da política eleitoral. Assim, as plataformas digitais desses influencers se tornam meios de fazer campanha ou militância e recorrentemente propagam discursos populistas da segurança pública, por exemplo, tolerância zero, guerra ao crime, policial herói.
Algumas polícias têm tentado disciplinar o uso das redes sociais por parte de seus integrantes, como fez o Poder Judiciário, em que o Conselho Nacional de Justiça emitiu a Resolução Nº 305 de 17/12/2019 para estabelecer parâmetros para os magistrados. Todavia, tais ações têm sido encaradas como censura à liberdade de expressão. Assim, na falta de regramentos claros, as atividades dos influenciadores digitais no poder público têm sido toleradas. O caso do delegado Da Cunha é paradigmático. Ora, não se conquista milhares de seguidores de uma hora para outra; isso foi informalmente consentido.
No entanto, o problema não é o policial influencer em si, mas sim o que ele representa e divulga. Boa parte dos canais e perfis desses influenciadores, comumente, promove visões conservadoras e sensacionalistas da atividade policial; o que é compartilhado por pessoas e algoritmos de forma incomensurável. O dilema é que os policiais influencers falam a linguagem de hoje, porém podem ser divulgadores dos velhos discursos e práticas da função policial. Enfim, o risco é que eles repliquem e consolidem no ciberespaço mais ainda o mito da polícia autoritária e violenta como sinônimo de segurança pública.
Alexandre Pereira da Rocha - Doutor em Ciências Sociais (UnB); associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).