A proposta de quarentena eleitoral para policiais prevista na nova legislação eleitoral tem suscitado um acalorado debate. Os contrários argumentam que a proposta é discriminatória, pois trata os policiais de forma diferente dos demais cidadãos. Já aqueles favoráveis à ideia sustentam que a medida é necessária para afastar a política dos quartéis.
No fundo, a discussão trata de duas dimensões inseparáveis da atividade policial. A polícia é ao mesmo tempo uma instituição e uma corporação, como explicou o sociólogo francês Dominique Monjardet. Ela é uma das mais importantes instituições de Estado, baseada num conjunto de leis, normas e práticas que organizam seu funcionamento. Mas ela também é uma corporação composta por profissionais que ocupam as diferentes carreiras existentes nos seus quadros.
Nem sempre os interesses institucionais coincidem com os corporativos. Parece ser o caso da discussão sobre a quarentena eleitoral. Do ponto de vista institucional, faz todo sentido tentar afastar a política partidária do dia a dia dos policiais. Por outro lado, sem representantes eleitos é pouco provável que medidas relacionadas à valorização profissional – saúde, salários, condições de trabalho – sejam discutidas e aprovadas.
Trata-se, portanto, de um dilema entre a instituição e a corporação policial. Para entendê-lo é necessário olhar para as mudanças que aconteceram nas últimas décadas.
No passado, os comandantes de polícia representavam ao mesmo tempo os interesses institucionais e corporativos. Suas decisões ora pesavam para um lado, ora tendiam para o outro. O quadro mudou radicalmente nas últimas décadas. Os comandantes deixaram de ser vistos como os legítimos representantes dos interesses da corporação policial. Hoje são as associações de policiais que falam pelas carreiras. Essa voz tem poder maior se for amplificada pelos policiais eleitos. Eleger policiais é uma estratégia fundamental da corporação policial na luta por valorização profissional.
Às vezes a luta por pautas corporativas pode prejudicar a autonomia institucional. As associações e seus representantes políticos possuem agendas próprias e frequentemente se opõem às novas políticas e programas da instituição. Iniciativas como a contratação de funcionários civis, cooperação com organizações não-governamentais e a adoção de metas de desempenho têm encontrado grande oposição.
Não há dúvida de que o poder das associações vem aumentando a cada eleição. Basta ver o número de policiais eleitos com seu apoio. Mas isso não resultou no fortalecimento institucional das polícias. Ao contrário, a proximidade entre policiais e políticos tem comprometido a autonomia funcional. Em alguns estados, temos verificado o enfraquecimento dos protocolos, das cadeias de comando e dos sistemas de supervisão.
Certamente as paralisações de policiais militares – eufemismo para greve - são as situações mais dramáticas de enfraquecimento da estrutura institucional. Geralmente os motivos são justos e dizem respeito aos baixos salários, planos de carreiras desatualizados e condições de trabalho precárias. Mas as paralisações também servem para catapultar carreiras políticas.
De acordo com o levantamento do professor José Vicente Tavares dos Santos, da UFRGS, entre 1997 e 2019 aconteceram 52 paralisações de policiais militares. Nesse mesmo período foram apresentados 31 projetos de anistia na Câmara dos Deputados e oito no Senado. Também foram aprovadas quatro leis de anistia, sendo que a última - Lei 13.293 de 2016 - anistiou todos os policiais que participaram de paralisações desde 1997. São inúmeros os casos de lideranças grevistas que se tornaram parlamentares.
Mais recentemente surgiu uma trajetória para construção de carreiras políticas. São os policiais que se valem das suas posições institucionais para alimentar seus blogs e canais com conteúdos sensacionalistas. Diferentes das lideranças grevistas, esses policiais influenciadores digitais não precisam de associações ou greves para se promover. Eles tampouco defendem pautas de interesse das carreiras policiais. Esse tipo de atuação individual não serve nem aos interesses corporativos nem aos institucionais. Visam simplesmente a promoção pessoal.
O conflito entre interesses institucionais e corporativos sempre existirá. Não se trata, portanto, de eliminá-lo, mas de buscar um equilíbrio. Pois não há uma instituição policial forte sem que os profissionais sejam valorizados. Tampouco é possível pensar que a corporação policial pode se fortalecer sem que exista por trás uma instituição capaz de prover a segurança que a população exige.
Quanto à quarentena eleitoral ou qualquer outro tipo de restrição de candidaturas, vale lembrar outra lição de Dominique Monjardet. Além de instituição e corporação, a polícia também é uma profissão. E, de fato, a polícia é uma profissão de Estado – como militares, juízes, promotores e diplomatas - que por um lado tem direito à aposentadoria especial e, por outro, precisa estar submetida à legislação eleitoral específica. A instituição agradece.
Arthur Trindade M. Costa
Professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Fonte: fontesegura.org.br