A violência e o “ambiente” de trabalho policial foi midiatizado e entrou como elemento “jornalístico” e literário, como material de consumo, para parte da sociedade brasileira. As consequências são múltiplas e complexas; todavia, as personagens mudaram de papeis com a mudança de tecnologias e os capitais advindos do protagonismo jornalístico-literário são redistribuídos. Pelas ondas radiofônicas, Mario Eugênio foi um repórter simbólico deste gênero na década de 1980. Todavia, foi assassinado por policiais ao denunciar um grupo de extermínio que atuava no DF e GO. Além do rádio, o “entretenimento” policial também estava presente na televisão. Programas como Aqui Agora, com o emblemático Gil Gomes, Linha Direta, com Marcelo Rezende, e o contemporâneo Brasil Urgente, com Datena, seguem a mesma lógica de ofertar um produto para um público que consome histórias e informações aparentemente reais de violência.
Os recursos da internet aumentaram o protagonismo de quem antes era observado e analisado. Policiais iniciaram carreiras paralelas com diferentes objetivos e concorrem neste mercado. A lógica é a mesma de outrora. Entretanto, o que era realizado institucionalmente agora é capilar, individual e sem controle; e os benefícios monetários e sócio-políticos que iam para grandes agências de comunicação e seus apresentadores agora são distribuídos.
O debate ganhou notoriedade quando houve o início de investigação do Delegado Da Cunha por, entre outros possíveis crimes, simular uma operação policial para gravar e postar em seu canal na internet com 3.660.000 inscritos. Há outros 60 vídeos similares que têm o título Operação Policial, com mais de 5 milhões de visualizações em média. Há vídeos em que o delegado comenta operações gravadas para o canal. É perceptível nos vídeos que a câmera particular é fixada na roupa do delegado e outros policiais utilizam celulares. Esses vídeos têm duração de 20 minutos, em média. O último vídeo Operação Policial foi postado há um mês, pois houve intervenção administrativa da instituição. No entanto, a frequência postagens de vídeos pelo delegado é de aproximadamente um a cada três dias. Todos os vídeos são realizados em comunidades chamadas de favelas.
A motivação dos vídeos ainda está para ser demonstrada, mas o campo político-partidário e a monetização são algumas das possibilidades. Usar canais de internet como projeção política não é recente. A Bancada da Bala, com 93 deputados e 10 senadores, tem vários agentes de segurança com canais na plataforma YouTube, entre eles: Sargento Fahur, desde 2011; Major Olímpio, desde 2012 e com 1,61 mi inscritos; Capitão Alberto Neto, desde 2008, com 7 mil inscritos; entre outros delegados e militares.
O que seria uma prática semelhante às práticas televisivas que se apropriam do trabalho e recursos estatais para obter capital político e econômico com vídeos, há nuances quando isso é realizado por agentes públicos. Instituições militares e policiais têm características de instituições totais. Como separar o público e o privado? Há risco de as narrativas e interpretações realizadas pelos policiais, mesmo como interesse particular, serem tidas como institucionais?
Outro ponto a ser debatido é quanto aos protocolos operacionais de equipes de filmagens em operações policiais. Não estão estabelecidos os parâmetros de segurança para policiais e cidadãos, sendo comum perceber que nas mais simples abordagens há a intersecção no trabalho de repórter cinematográfico e agente de segurança, reduzindo a atenção e ações dos protocolos de segurança.
Outra questão é que os direitos de imagens não são respeitados por quem é um agente garantidor dos direitos humanos. Já os direitos autorais e de propriedade e a responsabilidade pelos resultados obtidos com a obtenção das imagens e sua divulgação também não estão regulados; já que quem está agindo é um agente estatal em serviço, representando o Estado.
Além disso, como uma das consequências, sedimenta na população questões de segurança pública com soluções simplistas baseadas no protagonismo policial, sem considerar as dinâmicas política, social, cultural e econômica da criminalidade e a necessidade de políticas públicas de prevenção e repressão da criminalidade e de políticas de reintegração das pessoas que cometeram delitos. As narrativas apresentadas reforçam a lógica do mercado do medo e auxiliam no fomento da cultura da violência, e, em ciclo vicioso, apresenta a solução violenta, aumentando a sensação de insegurança e estimulando o aumento da repressão a curto prazo, a partir do reforço do ethos policial de guerreiro que combate o mal. O capital econômico e político são mercantilizados. Reforça ainda os estigmas construídos contra jovens e territórios negros. A maioria das operações planejadas para os vídeos, tanto dos agentes quanto das empresas midiáticas, são realizadas nestes territórios e contra esse grupo, conforme pesquisas realizadas que analisaram a lógica das abordagens.
Assim, para obter capitais políticos e econômicos produtos da midiatização de algumas atividades policiais, há a apropriação de recursos do Estado para fins particulares (de agentes públicos e de empresas) e risco a agentes de segurança e cidadão nas operações. Há ainda violências contra as comunidades vulnerabilizadas política e economicamente tanto na sua exposição a violências, quanto nas narrativas construídas do indivíduo criminoso e sobre a criminalidade.
Gilvan Gomes da Silva - Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.