A participação dos municípios na área de segurança pública ainda é pequena em termos de volume de recursos financeiros (6,7% dos gastos totais, FBSP 2020), mas é crescente quando analisamos este dispêndio no decorrer dos anos. Cresce também quando analisamos a quantidade de municípios que criaram suas Guardas ou outras estruturas para atuar neste campo. Segundo a pesquisa MUNIC de 2020, das 5570 cidades brasileiras, 23,6% possuíam uma secretaria ou órgão para cuidar da área e 14,9% tinham Conselho Municipal de Segurança. A quantidade de cidades com guarda municipal aumentou de 19,4% para 21,3% desde a última edição da pesquisa e seque crescendo a cada nova edição. (IBGE, MUNIC, 2020)
Mais do que em volume de recursos investidos ou estruturas criadas, a atuação municipal em segurança cresce em competências e atribuições, quando comparamos o estabelecido pela Constituição em 1988 com os textos posteriores, com o Estatuto das Guardas de 2014 e a Lei do SUSP de 2018. E os municípios parecem que ainda não se deram conta de que atuar em segurança envolve ações preventivas que vão muito além da criação da Guarda Municipal e da questão do “poder de polícia”.
Em seu art. 144, a Constituição não faz menção às Guardas Municipais entre os órgãos de segurança, não obstante centenas de cidades já tivessem criado suas Guardas antes de 1988. Parece que naquele momento os municípios não quiseram assumir esta fatura e o entendimento comum era de que segurança pública é questão dos Estados.
Assim, a Constituição reservou aos Municípios e às guardas um papel limitado. Há uma menção específica ao tema da segurança municipal no §8º, quando diz que “os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”. Chamo a atenção para o verbo “poderão”, uma opção portanto. E para a limitação na destinação das Guardas à proteção patrimonial. No mais, a regulamentação deste parágrafo ocorreu apenas 26 anos depois, em 2014, e deixou outras lacunas, pois há sempre algum outro trecho obscuro em algum outro lugar que abre brechas para distintas interpretações.
Talvez com exceção dos crimes digitais, tráfico internacional de drogas e outros que envolvem as fronteiras estaduais, diria que a maioria absoluta dos crimes é “local”, de modo que alguém poderia argumentar que caberia ao Município legislar, ainda que suplementarmente, sobre segurança, um assunto de evidente interesse local. Ocorre que Brasil é o paraíso dos advogados e dos infratores, pois as leis são propositadamente ambíguas e eternamente sujeitas a reinterpretações. Quase tudo é questão jogada para leis complementares, nunca criadas ou para a jurisprudência e nem sequer nesta existe muita solidez.
Pelo menos de maneira “suplementar”, eu diria, portanto que um município estaria apto a legislar sobre segurança pública (embora apenas a União possa editar leis sobre matéria penal e processual), assunto de interesse local. É uma interpretação plausível da Constituição e poderia levar anos até que se discutisse o mérito da questão e a matéria transitasse em julgado. Já existe um projeto de lei, por exemplo, que autoriza os Estados a legislarem sobre crimes e punições, usando como justificativa a cultura local.
Por que não os Municípios? O fato é que com o avanço da criminalidade e da pressão sobre os prefeitos, os municípios foram ampliando sua atuação, tanto através das Guardas como por meio de outras intervenções preventivas. Como justificativa para a criação da Guarda, muitas prefeituras argumentam que gastam com segurança, apoiando, por exemplo, as atividades das polícias estaduais, mas não conseguem ter influência no emprego das polícias estaduais ou nas atividades ou áreas de seu interesse. A Guarda custa caro, mas pelo menos está sob o comando do prefeito. Parte deste impulso municipalista na segurança foi dado pelo Governo Federal que, independentemente da Constituição, na prática passou a considerar as Guardas como integrantes do sistema de segurança.
Municípios e Guardas são mencionados nos Planos Nacionais de Segurança desde 2000 e, mais importante, contemplados com recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública e outros recursos federais. Entre 1996 e 2019, foram firmados 1.972 convênios com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, sendo 1.123 (57%) com governos estaduais e 849 (43%) com municípios. As agências internacionais e os estudos acadêmicos tiveram seu papel impulsionador, uma vez que traziam para o Brasil diversos exemplos de projetos municipais bem sucedidos em outros países, onde cabe aos municípios parte importante do esforço contra a criminalidade. Isto talvez explique a expansão gradual, na prática, das competências e atribuições das Guardas Municipais.
Para dar uma ideia desta ampliação, em 2009 o IBGE pesquisou através da MUNIC a estrutura municipal de segurança e, entre outras questões, as atividades que as Guardas exerciam. A lista, ia bem além da “proteção dos próprios municipais” da Constituição e incluía, segundo as prefeituras: "Segurança e/ou proteção do prefeito e/ou outras autoridades”, “Ronda escolar", "Proteção de bens, serviços e instalações do município", "Posto de guarda", "Patrulhamento ostensivo a pé, motorizado ou montado", "Atividades da defesa civil", "Atendimento de ocorrências policiais", “Proteção ambiental", entre outros.
Esta ampliação das competências da Guarda e do Município gerou uma série de contestações judiciais, tanto por parte dos órgãos de segurança que se sentiam usurpados, quanto por parte de cidadãos, que por qualquer motivo foram autuados pela Guarda e procuraram questionar a legitimidade desta autuação. Para tentar legalizar esta atuação ampla, o Congresso aprovou em 2014 o Estatuto das Guardas, que logo em seu Art. 2º afirma que “Incumbe às guardas municipais, instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em lei, a função de proteção municipal preventiva, ressalvadas as competências da União, dos Estados e do Distrito Federal.”
Novamente aqui, “proteção municipal preventiva” é um conceito vago e amplo demais. Segundo o entendimento de alguns, o Estatuto violaria a Constituição quando elenca as competências da Guarda e quando elege como um “princípio” o “patrulhamento preventivo” - (princípios, a meu ver, são conceitos mais abstratos e de fundo moral, como “transparência”, “não descriminação”, “participação da sociedade”. Patrulhamento preventivo é quando muito uma tática operacional e não um princípio).
O Estatuto inovou ao conferir às Guardas a proteção “sistêmica” (o que quer que isso signifique) da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais”, não se restringindo apenas ao patrimônio municipal. Mas estas novas atribuições ainda dão margem a muitas dúvidas. Por exemplo: as revistas pessoais são outra modalidade de tática operacional e ninguém duvida que contribuam para a “proteção municipal preventiva”. Poderia então a Guarda revistar pessoas (embora não esteja expresso no Estatuto) uma vez que se a Lei dá a função deve também, por extensão, autorizar os meios para concretizá-la? Revista pessoal não é proteção preventiva? Poderia ser realizada apenas dentro das instalações municipais? Em qualquer lugar? Em lugar algum?
Creio que estes limites ainda não estão estabelecidos e a jurisprudência irá com o tempo solidificando alguns entendimentos. O fato é que o Estatuto procurou dar cobertura jurídica ao que as Guardas já fazem na prática, conforme a descrição de atividades nas pesquisas do IBGE. Mas é uma Lei infraconstitucional e como tal não pode ser superior à Constituição, no caso de conflito de interpretações.
Outro diploma legal que merece menção especial é a LEI Nº 13.675, DE 11 DE JUNHO DE 2018 – que criou o SUSP – Sistema Único de Segurança Pública -, que estipula em seu Art. 2º que “A segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos, compreendendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Munícipios, no âmbito das competências e atribuições legais de cada um”. A lei inclui explicitamente os Municípios entre os integrantes “estratégicos” do SUSP e as Guardas Municipais no rol dos integrantes “operacionais”.
Como a finalidade do SUSP e do Plano Nacional de Segurança Pública é a de “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, isso implica novamente a ideia de que os Municípios também têm corresponsabilidades não apenas pela preservação do patrimônio (Constituição), pessoas (Estatuto da Guarda, se nos estabelecimentos municipais) mas agora também pela preservação da ordem pública. Na verdade, a lei do SUSP abre possibilidades ainda maiores, estipulando diretrizes em que os Municípios devem atuar de forma integrada com os outros entes em ações de segurança pública. Isso significa que integrantes do município, em operações em equipe, possam participar em ações de inteligência e investigativas? Há sempre a ressalva “nos limites de suas competências”, mas como vimos, a Constituição considera que é de competência comum “Zelar pela guarda da Constituição, das Leis e das Instituições democráticas”.
Assim, no limite novamente, a Guarda Municipal teria legitimidade para participar em atividades investigativas e de inteligência contra organizações que atentassem contra a Constituição e as Instituições democráticas, pois isto está dentro dos limites de sua competência. O Art. 16. abre outras possíveis brechas para atuação das Guardas, quando menciona que “os órgãos integrantes do SUSP poderão atuar em vias urbanas, rodovias, terminais rodoviários, ferrovias e hidrovias federais, estaduais, distrital ou municipais, portos e aeroportos, no âmbito das respectivas competências, em efetiva integração com o órgão cujo local de atuação esteja sob sua circunscrição, ressalvado o sigilo das investigações policiais”.
Sempre que a lei cria uma nova possibilidade de atuação, e coloca a ressalva “no âmbito das respectivas competências”, ela abre novas brechas pois estas competências não estão completamente delimitadas. O que vemos, portanto, é que os Municípios e as Guardas foram gradualmente avançando – sem pretender entrar no mérito da questão – em termos de competências e atribuições e na prática vão, digamos assim, “esticando a corda”, até que o Judiciário consolide uma posição sobre os temas.
As polícias têm grupos de pressão atuantes no Congresso, mas como muitos ex-policiais estaduais assumem postos de direção nas Guardas e Secretarias Municipais de Segurança, parece que não houve oposição ferrenha a esta ampliação. Se pairam dúvidas sobre os limites de atuação da Guarda, é preciso dizer que o Município tem amplas competências e possibilidades de atuação preventiva, veio que deveria ser muito mais explorado na atuação dos municípios na segurança pública.
Tulio Kahn - Doutor em Ciência Política e consultor em Segurança Pública.