Dois fatos importantes tomaram destaque na mídia nacional nos últimos dez dias. Cada qual tem seu nível de importância, mas ambos são relevantes para a discussão e a busca de consensos no seio da sociedade. Trata-se da ocorrência em que morreram 26 infratores da lei que pretendiam sitiar cidades a fim de assaltar bancos e a retirada da denúncia criminal contra mulher que, durante uma ocorrência, foi agredida por policiais militares. Pretendo, na coluna de hoje, abordar o chamado novo cangaço e sua repercussão.
NOVO CANGAÇO
Há pelo menos dez anos, “frutifica” no Brasil, em especial nos estados do Nordeste, região oeste de Minas Gerais e norte do Espírito Santo, o que se cunhou denominar “novo cangaço”.
Eu caracterizaria o “novo cangaço” pelos seguintes aspectos:
(a) disposição de grande quantidade de integrantes criminosos;
(b) divisão explícita de tarefas;
(c) formação de subgrupos com finalidades operacionais distintas;
(d) adoção da compartimentação – segmentação de informações para evitar vazamentos, ou seja, poucos sabem de todas as ações que serão perpetradas;
(e) emprego de farto material bélico, inclusive de guerra (fuzis, metralhadoras .50, coletes balísticos, granadas e explosivos de diversas potencialidades);
(f) planejamento minucioso;
(g) obtenção de informações privilegiadas;
(h) organização precisa, com adoção de técnicas militares de confronto, de deterrance, de dissuasão e de guerrilha;
(i) treinamento preciso; e
(j) necessidade de humilhação da polícia.
Nessas circunstâncias, questiona-se até onde isso é uma ação “pura e meramente” criminal ou ação até certo ponto política, cujo mote é a subjugação do Estado na figura da polícia.
O consórcio dos Estados do Nordeste, agregando as Polícias Militares de Minas Gerais e Espírito Santo, há pelo menos uma década, vêm criando unidades especializadas em patrulhamento, combate e repressão dessa modalidade criminosa, com encontros periódicos e temáticos visando à troca de informações e de experiências entre si. Além disto, dada a gravidade das ações criminosas, há planejamentos prévios, entre as unidades circunvizinhas das Polícias Militares, nesses estados, para se apoiarem entre si, inclusive relegando a segundo plano a divisão territorial das unidades federativas, tal a contundência e a violência desses criminosos.
Já falei aqui, em outra oportunidade, neste mesmo espaço, sobre a capacidade de letalidade de um único fuzil. Três décadas e meia atrás, o grande temor dos policiais militares era o surgimento das pistolas, que possuíam capacidade bélica muito maior do que a de um revólver 38. Basta relembrar que o 38 era a arma oficial das Polícias Militares. Passados 35 anos, não é tão incomum o emprego de fuzis em ações organizadas em São Paulo, e muito mais comum no Rio de Janeiro. O fuzil tem o potencial de transfixar pelo menos dez pessoas. Ele só tem como obstáculo os postes (por conta da mistura de concreto com aço) e os motores de veículos.
Tive um policial, no ano de 2013, na região metropolitana norte de São Paulo, que foi alvejado por um tiro de fuzil. Perdeu metade da cabeça e, até dois anos depois, quando ainda tive notícias dele, vivia de forma vegetativa. Em 2014, quando comandante do policiamento na cidade de São Paulo, um sargento da Força Tática da zona leste morreu alvejado por um tiro de fuzil disparado por assaltantes de banco. Detalhe: a equipe sequer sabia do roubo, tendo sido pega de surpresa. Nos atentados de 2003 e 2006, dois policiais militares morreram por terem sido alvejados, um na perna e o outro no braço, tendo seus membros sido decepados e ambos faleceram em decorrência de forte hemorragia. Esses são apenas casos de que tive conhecimento muito próximo, dentre dezenas de outros que ocorreram nas duas últimas décadas.
Em resumo, quero dizer que a ocorrência de Varginha é, no mínimo, muito complexa. Não é possível fazer, de imediato, uma análise fria do quadro. Não podemos ser “engenheiros de obra pronta”. Fácil criticar, difícil operacionalizar. Criminosos com tal poder ofensivo, via de regra, não estão dispostos a negociar. Primeiro, porque não sabem quem está do outro lado: se policiais de tropas de choque e de elite ou se policiais não habituados a ocorrências complexas como essas. Segundo, porque, cientes de seus riscos, imaginam que o enfrentamento nem sempre é a pior opção. Nesses roubos de grande envergadura, já sitiaram unidades policiais e mataram policiais e civis.
O fato, para mim o mais óbvio, é que não dá para sair criticando exasperadamente as unidades especiais da Polícia Militar de Minas Gerais. Apenas uma reconstituição muito criteriosa poderia diagnosticar se houve ou não excesso. As fotos estampadas em jornais, com fuzis, metralhadoras, coletes, granadas, explosivos etc. evidenciam o desiderato de tais elementos. Tais ações não são pura e simplesmente ações policiais. São, antes, ações de guerra e, por isso, requerem ações táticas militares e não policiais.
Cabe ressaltar que inúmeras ações táticas que vieram para unidades policiais de elite nos Estados Unidos (as denominadas SWAT), nos anos 70, tiveram por origem as Forças Armadas norte-americanas.
No Brasil contemporâneo, difícil vislumbrar um fio de otimismo. Regredimos em todos os sentidos, para a incivilidade e a barbárie. Tristes tempos…
GLAUCO SILVA DE CARVALHO - Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo
Fonte: fontesegura