Por José Miguel Garcia Medina
A Lei 14.230, de 25/10/2021, alterou a Lei 8.429/1992, que dispõe sobre improbidade administrativa. E já está em vigor.
A nosso ver, não se trata de mera reforma legislativa. Pode-se mesmo dizer que, doravante, tem-se uma nova Lei de Improbidade Administrativa. Com efeito, alteraram-se as bases fundantes da Lei 8.429/1992. Há, daqui em diante, um novo sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa.
Há muitos pontos interessantes e complexos, a merecer a consideração da doutrina, e que, certamente, serão objeto de decisões dos Tribunais superiores. E tais pontos não dizem respeito apenas ao direito administrativo, estritamente considerado.
Há disposições novas que se relacionam ao tratamento constitucional da matéria (§ 4.º do artigo 37 da Constituição Federal), e, também, que determinarão (re)interpretação de regras do Código Civil, para se definir com precisão seus lindes de incidência (como o artigo 935 desse Código, em confronto com o § 4.º do artigo 22 da Lei reformada), ou que exigirão dos juristas consideração atenta acerca de textos do Código de Processo Civil, tal como eram aplicados às ações de improbidade administrativa, antes da Lei 14.230/2021 (por exemplo, quanto à determinação de indisponibilidade de bens do réu, que, antes, era considerada pela jurisprudência majoritária como hipótese em que haveria periculum in mora implícito, algo aparentemente incompatível com o novo regime legal). Todos são temas relevantes e, por certo, com o passar do tempo, acabaremos versando sobre esses e outros assuntos nesta coluna.
Na presente edição, nos limitaremos a chamar a atenção para a seguinte questão: A nova lei aplica-se retroativamente, a atos praticados antes de sua aprovação?
Na doutrina e na jurisprudência, há muito, afirma-se que o sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa integra aquilo que se convencionou chamar de direito administrativo sancionador. Isso significa que princípios e garantias ínsitos ao direito penal (ou às sanções decorrentes da prática de ilícitos penais) acabam-se aplicando, também, às sanções oriundas da prática de atos de improbidade administrativa e ao procedimento judicial em que se discute sobre a aplicação de tais sanções.
Não se trata de entendimento novo, embora existam, na jurisprudência, decisões expressivas, proferidas recentemente, nesse sentido.
Por exemplo, extrai-se de julgado expressivo do Superior Tribunal de Justiça o seguinte: “Realmente, o objeto próprio da ação de improbidade é a aplicação de penalidades ao infrator, penalidades essas substancialmente semelhantes às das infrações penais. Ora, todos os sistemas punitivos estão sujeitos a princípios constitucionais semelhantes, e isso tem reflexos diretos no regime processual. É evidente, assim – a exemplo do que ocorre, no plano material, entre a Lei de Improbidade e o direito penal –, a atração, pela ação de improbidade, de princípios típicos do processo penal.” Esse trecho de voto lavrado pelo saudoso Ministro Teori Albino Zavascki quando ainda atuava no Superior Tribunal de Justiça,1 orienta o entendimento prevalecente na jurisprudência que se seguiu, consoante se dará notícia na sequência.
Nós mesmos, há muitos anos, já manifestamos esse mesmo entendimento.2
De todo modo, a Lei reformada dispôs, expressa e textualmente: “Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador” (§ 4.º do artigo 1.º da Lei 8.429/1992, na redação da Lei 14.203/2021). Essa, pois, a natureza do estatuto aqui examinado, que se detém sobre o sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa.
Criticável ou não, o fato é que essa é a opção legislativa, e, não havendo inconstitucionalidade, as regras já em vigor devem ser observadas e aplicadas.
A ação de improbidade administrativa, assim, embora siga o procedimento previsto no Código de Processo Civil (salvo o disposto na Lei 8.429/1992, cf. dispõe o seu artigo 17, caput, na redação da Lei 14.230/2021), não tem natureza puramente “civil”.
Aí começam os problemas. Não há dúvida de que as novas regras, adicionadas ou modificadas pela Lei 14.230/2021, devem ser aplicadas desde logo. Mas, sendo correta essa orientação, tais disposições aplicam-se inclusive a processos em curso, ou apenas a ações novas? Atingiriam decisões já transitadas em julgado, para afastar condenações por atos que, de acordo com o novo sistema, não haveriam de ser considerados ímprobos? Se afirmativa a resposta a essa questão, quais instrumentos poderiam ser utilizados com o propósito de se aplicar o novo regime?
Nesta edição da coluna pretendemos tocar apenas em uma das dúvidas aventadas. Não é possível analisar, com vagar e profundidade, as peculiaridades que podem emergir da extensa e diversificada gama de ações de improbidade administrativa que existem e existiram, e certamente há demandas que, em razão de suas peculiaridades, exigem análise específica e mais detida. Por isso, nos limitaremos a expor, aqui, o princípio geral que deve orientar a interpretação do novo regime legal.
Tratando-se, como efetivamente se trata, de parte do direito sancionador, a resposta que se impõe à primeira das questões formuladas é uma só: Tal como a lei penal (art. 5.º, caput, XL, da Constituição Federal), assim também a legislação que prevê sanções por atos de improbidade não retroage, salvo para beneficiar o réu.
Tome-se, por exemplo, os atos que, de acordo com o novo sistema, não são considerados ímprobos. Aquilo que, paradoxalmente, chamava-se de “improbidade culposa” (a expressão é contraditória pois, se improbidade é ato praticado com desonestidade, não se compreende “desonestidade culposa”), se não mais é considerado ato de improbidade pela nova lei, não mais serão penalizados.3 Esse princípio deve ser aplicado também aos atos praticados antes da vigência da Lei 14.230/2021, que alterou a Lei 8.429/1992.
Há julgados expressivos que seguem o princípio, conquanto não se dediquem especificamente à questão aqui analisada.4 E outros autores, analisando a Lei que acabou sendo aprovada, já se manifestaram no mesmo sentido.5
Assim, a nova tipologia normativa dos atos de improbidade administrativa e de suas sanções, por força do art. 5.º, caput, XL da Constituição, cumulado com o artigo 1.º, § 4.º, da Lei 8.429/1992 (na redação da Lei 14.230/2021), aplica-se aos atos praticados antes de sua vigência, se para beneficiar o réu. A não ser que haja alteração no modo como o tema vem sendo tratado na jurisprudência até aqui (cf. julgados noticiados acima), esse é o entendimento que haverá de prevalecer, doravante, nos Tribunais.
Em textos vindouros da coluna procuraremos explorar, como mais minúcias, as consequências desse modo de pensar.
1 STJ, REsp 885.836/MG, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 26/06/2007.
2 Cf. o que escrevemos em “O ônus da prova na ação de improbidade administrativa”, em coautoria com Rafael de Oliveira Guimarães, Revista dos Tribunais, vol. 867, p. 70-82, jan./2008. Cf., também, o que escrevemos, um pouco antes, em “Ação civil pública – Improbidade administrativa”, Revista dos Tribunais, vol. 813, p. 123-136, set./2003 (texto republicado posteriormente em Doutrinas Essenciais de Direito Administrativo, vol. 7, p. 995-1014, nov./2012).
3 Sobre a definição de improbidade administrativa à luz do texto constitucional, à qual devem-se acomodar as regras que lhes são inferiores, cf. o que escrevemos em Constituição Federal Comentada (Editora Revista dos Tribunais, 2021), em comentário ao § 4.º do artigo 37 da Constituição (mais informações a respeito aqui).
4 Exemplo: “O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage no caso de sanções menos graves, como a administrativa” (STJ, AgInt no REsp 1602122/RS, Relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 07/08/2018).
5 Cf., dentre outros, Luiz Manoel Gomes Junior, Diogo de Araújo Lima e Rogerio Favreto, “O Direito Intertemporal e a nova Lei de Improbidade Administrativa”, disponível em <O Direito Intertemporal e a nova Lei de Improbidade Administrativa>, acesso em 29/10/2021.
José Miguel Garcia Medina - Advogado, sócio do escritório Medina Guimarães Advogados, doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM. Integrou a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.
Fonte: conjur.com.br/