Moro em Recife há quase quarenta anos e posso garantir que o maior pancadão do mundo é o Galo da Madrugada. O bloco arrasta um milhão de foliões e dezenas de trios elétricos (paredões de som gigantes).
Durante o desfile do Galo podem acontecer algumas desordens como em um pancadão comum, como furto, brigas, venda de drogas, perturbação do sossego, inclusive o uso excessivo da força por parte da polícia.
A diferença entre o colossal Galo da Madrugada e os demais pancadões é que ele é realizado em acordo com a população e respeita a agenda turística, cultural e urbanística da cidade, em conjunto com as autoridades policiais.
Comparação ilustrativa à parte, os pancadões tornaram-se um fenômeno de entretenimento capaz de reunir milhares de jovens, incomodando a vizinhança e transeuntes, por conta da aglomeração, do barulho, confusões, obstrução do tráfego, delinquentes armados e outras irregularidades. Nesse cenário, os pancadões constituem um laboratório completo sobre a segurança urbana.
Considerando-se que a segurança, em seu sentido amplo, é um direito fundamental do indivíduo e responsabilidade primordial do Estado, podemos abordar o caso dos pancadões por dois ângulos complementares.
Por um lado, segurança urbana não é sempre (nem apenas) caso de polícia. Muito pelo contrário. Segurança é assunto municipal, questão de prevenção, de antecipar-se ao caso de polícia.
Por outro lado, segurança urbana é assunto amplo, que exige planejamento e investimento em políticas transversais, muito além (e muito antes) da simples equipagem e operação policial. Isso pressupõe um Estado com prioridades sociais e não um pensamento de Estado mínimo.
Sendo assim, quando um pancadão começa, de maneira irregular e desordenada, a segurança já perdeu a corrida contra o delito e está dado o dilema entre a desmoralização de deixá-lo prosseguir e o risco de dispersá-lo à força.
Depois que o pancadão começa, aí sim, vira caso de polícia e chovem os telefonemas para o 190 e o 193. A polícia, por sua vez, já sabe como podem terminar as intervenções desse tipo. A probabilidade de algo sair do controle assusta os próprios policiais.
É aí (ou melhor, é antes daí) que entra a prefeitura. Tenho dito repetidamente, sem medo de exagerar, que o prefeito é o comandante da segurança urbana. Não quero defender que o prefeito assuma o controle das operações policiais. Não é isso. Mas é o prefeito que deve coordenar o nível mais elevado do planejamento da segurança em sua cidade.
Pancadões não podem virar caso de polícia. Devem ser tratados com antecipação, pela prefeitura, sob a diretriz do plano municipal de segurança (ou de um plano de ordenamento territorial).
Pancadões são organizados em sua maioria pelas mesmas pessoas, nos mesmos locais, com a mesma estrutura, com os mesmos fornecedores de bebidas, nos mesmos horários, para o mesmo público. Não diferem em nada dos demais fenômenos da insegurança urbana.
Há um padrão de funcionamento. E ninguém melhor do que os órgãos municipais, junto com a população, para interpretar antecipadamente os fatores que levam à ocorrência de um evento como um pancadão. Não faz sentido deixar pancadões começarem.
Do ponto de vista operacional, a Guarda Municipal, em conjunto com os órgãos municipais de urbanismo e de vigilância sanitária (e de maneira integrada com as polícias estaduais e o corpo de bombeiros) devem ser capazes de identificar a mobilização preparatória do pancadão e evitá-lo de maneira pacífica e preventiva.
Além disso, a Administração Municipal deve tratar os fatores e padrões causadores e reprodutores de situações como os pancadões. O que os jovens vão procurar em um pancadão? Entretenimento, convivência, emoção, namoro, música, dança, renda informal, drogas, entre outros impulsos e interesses próprios da juventude?
Cabe às políticas públicas proporcionarem alternativas saudáveis e legais que favoreçam a cultura de paz e as expressões esportivas, artísticas, culturais, sociais, políticas e afetivas que cumpram de maneira cidadã o papel que os frequentadores e os organizadores de um pancadão procuram.
Não se pode simplesmente atribuir aos pancadões uma tendência de comportamento desordeiro, “coisa de negro”, “coisa de pobre”, “de periferia”, “de maloqueiro”. Esses eventos ocupam um vazio deixado por diversos interesses legítimos e normais que não contemplam a juventude.
É preciso atentar para o fato de que é mais fácil e barato deixar a sociedade e o governo tratarem a insegurança (e a desigualdade social) como casos de polícia. Um Estado que não investe em urbanismo social, prevenção, convivência, serviços e espaços públicos, governança e planejamento é um Estado que serve ao pensamento elitista de minimização do gasto público a qualquer custo.
Parece mais barato empurrar policiais para cima dos pancadões, sob risco de matarem ou morrerem, do que investir em alternativas estruturantes de renda e qualidade de vida para a cidade. Contudo, é preciso calcular se, realmente, é mais barato gastar com pistolas, cacetetes, viaturas e prisões do que com escolas, bibliotecas, saneamento, transporte público e praças.
Aos que tiverem dúvida, recomendo visitar o Recife para conhecer os COMPAZ (Centros Comunitários da Paz) e, se a pandemia permitir, o Galo da Madrugada.
Felipe Sampaio