O professor britânico Benjamin Bowling foi uma dos convidados internacionais do 14º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizado entre os dias 7 e 11 de dezembro. Titular de Criminologia e Justiça Criminal no King´s College de Londres, onde atua como reitor interino e reitor adjunto da Dickson Poon School of Law, foi professor do Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge, professor assistente no John Jay College de Justiça Criminal da City University de Nova York.
Bowling participou do evento, transmitido de forma virtual, e falou, entre outros temas, sobre a reedição de Política da Polícia, um livro muito conhecido pelos pesquisadores brasileiros, considerado seminal na pesquisa acadêmica sobre polícia e segurança pública. Lançado em 1985 e traduzido para o português em 2004, a obra, que teve como coautores Robert Reiner e James Sheptycki, ganhou sua nova versão em 2019.
A versão atual do livro, segundo o autor, manteve como fundamentos principais o conceito de que a polícia, por sua natureza, é uma atividade política. O segundo ponto é que a polícia é uma parte inevitável e essencial do processo democrático. Em sua nova edição, Política da Polícia leva em consideração a forma como a polícia se tornou mais transnacional e tecnológica. Veja abaixo os principais pontos da entrevista concedida por Benjamin Bowling a Arthur Trindade e Juliana Martins, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
P - Eu gostaria de começar perguntando sobre o livro que vocês acabam de reeditar. É um livro lançado em 1984, uma referência sobre os estudos de polícia. No Brasil foi traduzido para o português e lançado pela editora da USP em 2004 e tem sido bastante utilizado aqui pelos estudiosos. Gostaria que o senhor falasse sobre as novidades. O que ele traz de novo para nós?
R - A primeira coisa que eu gostaria de dizer sobre Política da Polícia é que quando foi publicado, em 1985, eu tinha acabado de terminar a minha graduação na Manchester Metropolitan University e essa quinta edição é a primeira oportunidade que envolvemos alguém além do grande professor Robert Reiner. Então as edições de 1985 e as posteriores foram publicadas somente por Robert Reiner, que era meu professor na London School of Economics no meu PhD. Ele é como um padrinho, um fundador dos estudos sobre polícia no Reino Unido. Até certo ponto, de forma mundial. A Política da Polícia, quando foi publicado pela primeira vez, foi o primeiro tratado sobre polícia. Também foi um livro que naquela época podia incluir tudo que foi escrito sobre a polícia em inglês. Todos os livros e artigos que tinham sido publicados até aquele momento foram usados como referência para o Política da Polícia. Ele teve uma importância imensa para o meu entendimento e moldou a forma como eu encaro a polícia e como eu venho escrevendo sobre o assunto nesses trinta e cinco anos. Foi realmente o início da minha jornada como um estudioso da polícia. Eu acredito que existem dois argumentos muito importantes no centro da Política da Polícia. Primeiro que a polícia, por sua natureza, é uma atividade política. O segundo ponto é que a polícia é uma parte inevitável e essencial do processo democrático. Por mais que nós possamos desejar que houvesse outra forma de manter a segurança ou executar a justiça, ou responder a conflitos ou reclamações, distúrbios, uma força policial democrática é o melhor que nós podemos fazer. Então você pergunta: o que mudou nesses 35 anos? Bom, vamos voltar para 1985. Nós tínhamos a União Soviética ainda existente. Os EUA ainda era uma democracia (risos) – isso foi uma piada. As mudanças haviam sido muito abrangentes. Mudanças em tecnologia. Em 1985 foi o primeiro ano em que nós tivemos um telefone móvel. Foi uma época em que nós não tínhamos ainda nem o primeiro computador pessoal. As mudanças tecnológicas estavam começando muito lentamente. As polícias do mundo haviam aumentado em número e em custo. As tecnologias da polícia, não apenas em tecnologia da informação mas armamentos, veículos, helicópteros, equipamentos em geral. Embora os anos 1980 na Inglaterra tenham sido um período bem revoltado e conflituoso, eu acredito que as tensões entre a polícia e a comunidade se aprofundaram nesses anos então, a nova edição do Política da Polícia tenta ser mais internacional, mais comparativa, com exemplos de outras partes do mundo, em particular dos sistemas civis continentais da Europa. Leva em consideração a forma como a polícia se tornou mais transnacional, mais tecnológica. Dito isso, a questão fundamental, o coração do problema, é que a força policial democrática é o melhor que podemos esperar para manter uma sociedade segura e reconhecer e compreender que todo policiamento é político. Esses são dois argumentos centrais, desenvolvidos por Robert Reiner nos anos 1980, quaisquer mudanças que tenham ocorrido, esse argumento central continua igual.
P - Como o senhor mencionou, o argumento central do livro é que a atividade policial é essencialmente política, não é? O que me faz pensar em situações em alguns países profundamente desiguais, como é o caso do Brasil. Países tão desiguais onde a atuação do estado é uma das principais causas da desigualdade. Ao invés de reduzir a desigualdade, frequentemente a maneira como o estado age na distribuição dos recursos acentua a desigualdade. Em particular a maneira como as polícias agem acentua as desigualdades. Eu gostaria que o senhor comentasse sobre essa dimensão política da polícia nessas sociedades extremamente desiguais. Como é que podemos pensar numa atividade política da polícia que consiga reverter esse círculo vicioso. Em vez de acentuar as desigualdades, reduzi-las.
R - É uma ótima pergunta e não é fácil de responder. O primeiro ponto eu gostaria de mencionar é que a forma como a polícia executa seu trabalho, o que a polícia faz, como se comportam, qual impacto é gerado na sociedade, reflete a cultura política dessa mesma sociedade. Então como você tem sociedades muito autoritárias, onde o poder é muito concentrado numa pequena porção de pessoas, sejam pessoas politicamente ou economicamente poderosas, tendo usado essa linguagem do autoritarismo, do militarismo, onde você tem um governo militarizado, autocrático, autoritário, a polícia por sua vez será autoritária, autocrática e militarizada. A cultura política de uma sociedade molda a constituição do trabalho da polícia. A forma como você tem uma sociedade que é mais democrática, onde as instituições do governo responsabilizam propriamente, aí você descobre que o trabalho da polícia também funciona de maneiras mais democráticas e responsáveis. Dito isso, é da natureza do trabalho policial, em qualquer lugar do mundo, que aquilo que a polícia faz ou tende a fazer reforça e entrincheira a desigualdade na sociedade. Isso por muitos motivos. Em parte porque a polícia, frequentemente é controlada e financiada por instituições e interesses que apostam em maximizar seus poderes. A polícia, de certa forma, mesmo em uma democracia, tende a favorecer os que estão economicamente melhor. Isso é algo que surge em todos estudos de criminologia. Pessoas menos poderosas, marginalizadas economicamente, são os menos protegidos pela polícia e pelo sistema criminal e estão mais sujeitos a sentir a atividade coercitiva e intrusiva do trabalho policial. É verdade que a polícia vai lidar com pessoas dormindo embaixo de pontes, dormindo nas ruas, igualmente, sendo ricos ou pobres. Mas é claro que são os pobres que estão sem teto, que moram nas ruas. São os pobres que estão pedindo dinheiro, que frequentemente estão cometendo aqueles tipos de crime mais visíveis no espaço público, na rua. A polícia tende a não focar nos crimes dos poderosos, que acontecem em locais privados, nas partes ocupadas pela elite da cidade ou do país. Então, eu acredito que é uma parte intrigante de como a polícia trabalha, as formas de trabalho com os marginalizados e isso se torna mais agudo em regimes políticos autoritários. Eu acho que a sua pergunta é o que fazemos com relação isso. É possível mudar? É possível pensar de forma diferente? Nós poderíamos falar mais sobre isso, mas eu acho que o ponto de partida é que se entendemos o policiamento como político, então, um dos elementos cruciais, na minha cabeça, sobre política, é a questão da responsabilização. Como um governo é responsabilizado? Como as pessoas poderosas são responsabilizadas? Da mesma forma, como a nossa polícia é responsabilizada? Sobre responsabilização, eu quero dizer duas coisas. A primeira é um caso de explanação e cooperação onde todos nós como cidadãos temos que estar hábeis a pedir à polícia ou a perguntar à polícia sobre o que fizeram, porque fizeram e qual efeito isso teve. ‘Explique isso para mim, por favor, de forma que eu possa entender porque você parou e revistou uma pessoa’. Ou tirou seu cassetete, ou atirou em uma pessoa causando sua morte. Esse é o primeiro estágio da responsabilização, que chamamos de transparência. O segundo elemento da responsabilização é o controle. A polícia, em uma democracia, deve estar subordinada e obediente ao povo. É a polícia está lá para servir o público e não apenas ser transparente em suas atividades e ações, mas também para ser mantida sob controle. Não deve ser possível que a polícia abuse de seu poder, de sua força e use violência. Que mate as pessoas desnecessariamente. Para mim, além desse assunto da questão de como vamos conseguir uma polícia melhor, como nós evitamos que a polícia marginalize ainda mais as pessoas mais pobres. A resposta é: através de melhores sistemas de responsabilidade. Temos que garantir que a polícia seja responsável pelo povo. Todo o povo.
"É claro que as pessoas poderosas terão essa polícia responsável, mas nós temos que ter um sistema de responsabilidade que assegure à polícia essa responsabilidade pelo povo que servem, pela população que estão servindo."
P - Certamente é um grande problema para as polícias do mundo todo e aqui no Brasil em particular é problema histórico, antigo, que é a nossa pouca capacidade de controlar as nossas polícias, o nosso sistema político, seja o sistema judiciário, seja o Ministério Público, que têm capacidade reduzida de controle das polícias. Um outro aspecto que eu queria comentar, também para ligar com esse tema da responsabilização, diz respeito à violência policial. Principalmente no caso brasileiro, a letalidade policial. Nós sabemos que em muitos países a atividade policial, a ação das polícias contra as minorias étnicas, tem deflagrado reações muito drásticas da comunidade. Reações de indignação, de raiva. Aqui no Brasil não é muito diferente. Nossas altas taxas de letalidade policial, os frequentes casos de abuso de autoridade das polícias, em que toda semana nós temos casos que a mídia mostra, enfim. O aprisionamento em massa da população negra, dos jovens negros, são indicadores claros de uma racismo estrutural. Parte desse racismo estrutural diz respeito à sociedade como um todo e parte desse racismo estrutural diz respeito à organização das polícias. Na sua visão, é possível mudar essa cultura organizacional das polícias e lidar com esse racismo estrutural? E aí fazendo uma relação com o controle da polícia. É possível mudar a polícia sem mudar o sistema de controle da polícia? O que vem primeiro, mudar o sistema de controle e não mudar a polícia ou mudar a polícia e o sistema de controle? É um dilema.
R - É verdade. Eu entendo o problema e, de fato, é um negócio muito complexo. Nós temos práticas policiais, nós queremos que a polícia opere de uma forma diferente. Queremos que a polícia trate as pessoas de forma justa e que use a força e o poder no mínimo necessário para fazer o trabalho. Podemos de fato remover esse uso de força, essa violência? Isso causa raiva entre os policiais, obviamente, porque a força é, claro, uma parte essencial do poder da polícia. Você não faz polícia sem essa capacidade de usar a força. Porém, nos queremos que a força e o poder sejam usados quando é apropriado, quando for o último recurso. Eu não sou uma pessoa que diz que a polícia nunca deve usar a força fatal. Quando a sociedade está colocada em assalto, onde acontece uma violência de sua privacidade, é claro que relativamente se concorda de que há circunstâncias onde a polícia tem a necessidade de usar a força. Em Londres mesmo, nós tivemos a militância islâmica armada com rifles de assalto tentando atirar e matar pessoas inocentes e utilizando coletes explosivos falsos. Em situações extremas, para estabilizar, a política tem sim que usar a força mortal. A polícia precisa atirar em casos como esse. Nós temos que admitir isso se vamos ter uma conversa. O ponto crucial é que isso tem que ser feito, primeiro, de forma necessária, proporcional, o mínimo possível, com parcimônia. Ou seja, tem que ser de forma legal e responsável. Mesmo o uso de força física, no caso, pode ser sim alcançado de forma consistente com os direitos humanos, eu acredito. Mesmo o advogado mais extremo de direitos humanos, vai entender que a polícia tem que usar a força algumas vezes. Mas você fez a pergunta sobre se é possível mudar o comportamento da polícia e mudar a cultura do sistema policial sem mudar toda essa questão econômica e política que é mais abrangente. O que vem primeiro? Você muda as práticas policiais primeiro ou você muda a cultura da polícia. Será que você deve mudar as estruturas da sociedade? O que vem primeiro? Bem, eu acho que, eu diria que eu sou um pragmático, eu sou pesquisador policial, enfim. Não sou sociólogo, não sou economista no meu dia a dia. Eu gostaria sim que a sociedade mudasse. Eu gostaria sim de ver na Inglaterra uma sociedade mais igualitária com menor lacuna, menor espaço entre os ricos e os pobres. Sem tantos impostos, enfim, eu gostaria de ver isso. Que o nível fosse mais equilibrado entre essas classes sociais de fato. Deveria acontecer isso. Eu apoiaria isso, eu votaria para isso na urnas, usaria obviamente a minha imagem nessas atividades. Mas em termos do meu trabalho profissional, eu estou interessado na polícia. Então, eu diria para trabalharmos com o que podemos, com o que temos em mãos. Vamos trabalhar com as forças policiais, com as práticas policiais existentes, com a cultura policial e vamos deixar os economistas e o pessoal da política fazer com que a sociedade seja mais igualitária. Se eu fosse um pesquisador policial no Brasil, eu falaria para os economistas fazerem a parte deles e eu faço a parte policial. Eu acho sim que é possível usar a lei e a política e códigos disciplinares para mudar o comportamento policial, porque nos anos 1970, por exemplo, a polícia costumava usar cães policiais nos EUA quando o suspeito corria. Se alguém correr da polícia e o policial soltar o cachorro em cima dessa pessoa, você já imaginou o que aconteceria o tempo todo? Causaria lesões e até mesmo morte. É uma experiência horrível. Mas então, na metade dos anos 1970, os inocentes começaram a ser mordidos por cães policiais ao léu. Isso moveu muitos processos contra a polícia por problemas muito sérios. Pessoas sendo mordidas, atacadas por cães policias ferozes. Isso causou centenas de milhares de dólares para tratamentos médicos e tudo mais. Indenizações para essas pessoas inocentes que foram mordidas por cães policiais, elas não tinham feito nada errado. Tinha que mudar. A polícia começou a pagar porque os cães estavam mordendo as pessoas aleatoriamente. Os departamentos policiais começaram a falar que não tinham mais o compromisso de fazer com que os cães fossem soltos atrás de suspeitos. Se alguém está correndo da polícia, não é mais permitido ao policial soltar o cachorro policial, etc. Oficial policial, se você fizer isso, você será responsável e receberá um processo judicial. O número das mordidas de cães foi daqui de cima até lá embaixo em poucos anos. Uma vez que os agentes policiais, que tinham o poder de machucar essas pessoas, tiveram responsabilidade pessoal e foram punidos por isso, mudou a forma que eles se comportavam. Eu diria que sim, podemos mudar a sociedade, podemos demonstrar isso. De fato, pode haver ativistas, podemos colocar isso nas votações, nas pesquisas policiais. Vamos controlar a polícia e fazer com que eles sejam responsáveis por todas as pessoas na sociedade.
P - Suas palavras são bastante otimistas. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública tem como uma dos seus principais objetivos conectar pesquisadores, ativistas sociais e jovens lideranças policiais, no sentido de transformar as práticas policiais e promover políticas públicas de segurança. Frequentemente, essas lideranças policiais se sentem desanimadas com esse trabalho porque percebem os limites da sua atuação dentro das polícias. Às vezes se sentem lutando contra forças muito maiores do que as suas capacidades. O que o senhor teria a dizer para animar esses colegas que se sentem numa luta tão difícil? .R - Eu acho que isso se aplica dentro das organizações. Você quer obviamente a mudança, mas há falta das minorias dentro da própria organização, minorias étnicas. Na Inglaterra, por exemplo, os jovens querem mudar, querem ver mudanças rápidas e fortes, mas como isso pode ser feito? Essa é a questão. Um dos meus músicos favoritos é Bob Marley, diz: "Se você é uma grande árvore, nós somos as pequenas formigas". A resposta: os pequenos atos. Se o indivíduo, o estudante, o professor de criminologia, profissionais do governo, enfim, se todos aplicarmos a nossa energia em pequenos atos, então, gradualmente vamos trazer e fazer mudança. Essa é a minha filosofia. Há dez anos, por exemplo, eu fundei uma ONG chamada StopWatch, que foi criada para fazer com que as forças policiais parassem e buscassem, pesquisassem antes de pararem as pessoas e dar batida nessas pessoas. Eles tinham que fazer isso com bons motivos. Isso começou a acontecer principalmente em Londres, porque as pessoas simplesmente davam batida policial em qualquer um. Aí começamos a focar nas pesquisas, começamos a publicar documentos, artigos e toda vez que havia uma questão desse tipo, um problema, alguém que aparecesse em uma televisão ou no rádio, quando eles falavam, quando os jovens mostravam suas experiências ruins que tiveram com a polícia, nós engajamos governos, delegacias de polícia, todo povo diferente ali nós colocamos juntos. Partidos políticos também foram engajados nisso, ou seja, todo mundo tem interesse em boa polícia. Nós não somos antipolícia. Eu sou a favor da polícia, eu quero a polícia. Quero que a polícia intervenha. Quero o trabalho policial. As comunidades não estão dizendo: não queremos polícia na Inglaterra! Ninguém fala que não querem nem metade da polícia, não é isso. Se alguém é vítima de uma violência, de um crime, de um roubo, se tem o carro foi roubado, se o dinheiro foi retirado da conta do banco, se o bairro foi prejudicado, enfim, nós queremos ser protegidos, nós precisamos dessa proteção policial. Genuinamente, nós precisamos da polícia. Mas se você abolir a polícia, isso é assunto para outro tema, não é? Mas se você abole a polícia, você tem que inventar algo novo para resolver esses problemas, certo? Ou vai deixar o quê? A violência do homem, do civil, isso começará a acontecer pelas as próprias mãos da comunidade. Pode ser uma ficção, enfim. Mas o que aconteceu com o IRA na Irlanda do Norte é que eles são responsáveis por isso, enfim. Eu acredito na boa polícia, sim. Eu diria que nós temos que continuar trabalhando por essa responsabilidade policial, usando todas as oportunidades para fazer com que as nossas vozes sejam ouvidas, que possamos perguntar coisas para a polícia. Eu entendo que deve ser superdifícil numa sociedade que está inserida, numa sociedade já violenta como a do Brasil, onde muitos milhares de pessoas são mortas pela polícia todos os anos. Eu gostaria de saber se esses policiais estão sendo investigados. Será que os jornais, a mídia, cobre isso de forma cuidadosa? E as testemunhas oculares, será que você consegue apoio das organizações, das forças dos direitos humanos? Ou da Anistia Internacional? Será que os observadores e pesquisadores podem vir observar? Há investigações particulares? Porque sempre que alguém sofre uma violência que leva à morte pela polícia, isso tem que ser investigado, ou deveria ser. O bom exemplo é como é que as coisas estão mudando. Será que eles estão o celular aqui? Antes da invenção do telefone móvel ou do uso tão abrangente do celular, a conduta ruim policial era invisível. O policial tinha baixa visibilidade. Isso não é mais verdade, pelo menos na Inglaterra. Porque tem câmera por toda parte. A maioria da população tem seu celular com a câmera ligada o tempo todo, assistindo e observando tudo que está acontecendo.
"Está todo mundo filmando um agente policial, um guarda fazendo algo estranho. A pessoa, de fato, guarda aquilo, grava aquilo e pode compartilhar. Há muito exemplos sobre isso e muitos exemplos de polícia atirando nas pessoas. Nós sabemos por causa de um cidadão comum, na rua, que filmou um ato desses vindo da polícia."
P - No Brasil, como o senhor perguntou, nós temos um número assustadoramente alto de mortes cometidas por policiais, por intervenções de policiais. A maior parte delas não são investigadas e mesmo as que são investigadas não chegam a serem punidas. Claro que algumas dessas mortes têm justificativas, mas são raras as que são investigadas e são raras as que levam algum tipo de punição. Hoje nós assistimos no mundo muito interessante em ver o que acontece na sociedade, nos EUA, no Brasil. O aumento das taxas de criminalidade, aumento do medo do crime, o surgimento de grupos de crime organizado. Tudo isso gera no imaginário da sociedade uma demanda incrível por lei e ordem. Hoje temos aqui candidatos políticos de extrema direita oferecendo essas soluções mais simples. Soluções que passam não pelo aumento do controle da atividade policial mas ao contrário, pelo relaxamento do controle da atividade policial. Como é que o senhor vê essa situação?
R - Bem, sempre que há aumentos nos níveis de criminalidade na cidade, sempre haverá pessoas que sentem que a solução é empoderar a polícia, aumentar o uso de força policial, da violência policial, para também conceder à polícia impunidade. Sempre haverá partes da sociedade e políticos que vão usar o argumento de que deve ser concedido maior poder à polícia, maior uso de força policial e que a impunidade deve ser concedida a esses atores. Eu considero isso um erro, que tende a aumentar os níveis de conduta inadequada da polícia. Eu acredito que é necessário ter alianças entre pesquisadores que, de forma independente, analisem evidências, elaborem relatórios e coloquem a informação disponível a todos. Também membros do governo e os próprios policiais, que possam responder. Um controle maior leva a um efeito melhor. O que é muito interessante na Inglaterra é que tanto na esquerda quanto na direita, há autoritários. Nós tivemos Blair falando sobre tolerância zero, que era uma visão muito autoritária da esquerda, e, ironicamente, o governo conservador em 2010 até 2015 viu o stop and search,o parar e revistar, cair muito rapidamente. Não apenas foi uma abordagem de um governo mais liberal mas também o crime diminuiu. Todos os crimes, crimes com faca, crimes violentos. Mesmo as intervenções policiais caíram em número. Eu acredito que há certos valores que eu tenho e talvez sempre tenha tido comigo, que Robert Reiner e eu articulamos em Política da Polícia.A democracia é a participação do povo no governo. O policiamento democrático tem o envolvimento das pessoas. Elas devem poder falar, devem ter uma voz. A polícia deve agir da forma mais igualitária possível entre todas as diferentes pessoas. As pessoas devem ser livres para viverem suas vidas, se associarem com quem quiserem, expressarem suas opiniões sem serem oprimidas. Eu não ligo para qual tipo de política, qual tipo de polícia, se você quer concordar comigo e virá comigo para conversar sobre policiamento democrático, responsabilização, equidade, justiça e liberdade. Eu sou um pesquisador, sistematicamente produzo evidências; penso teoricamente, o meu trabalho é escrever. Eu trabalho e coloco ideias no papel, mas quero ver o mundo mudar para melhor. Então, eu gostaria de ver as minhas ideias sendo colocadas em prática e isso significa que eu vou trabalhar com qualquer um que compartilhe dos meus valores na melhoria da polícia. A polícia nunca será perfeita, mas eu quero que seja boa o bastante. Nunca perfeita mas nós buscamos tentar fazer a polícia a melhor possível.
P - Bom, essa constatação de que temos tanto governos autoritários de direita quanto esquerda, nós também temos aqui no Brasil. Até agora nós discutimos problemas que eu diria, são os problemas tradicionais de polícia. Como fazer um policiamento democrático, responsável, enfim, um policiamento melhor, suficientemente melhor. Mas, ao mesmo tempo que nos esforçamos para transformar a maneira de fazer polícia, nós também temos novos desafios de polícia. No livro vocês abordam esses novos desafios. Hoje fala-se muito de uma era de transformação no policiamento. Novas formas de policiamento, uma mudança de paradigma. Do policiamento para governança de policiamento. Essa transformação de paradigma traz também novos desafios e mudanças trazem desafios. Um desses deles diz respeito à legitimidade da ação policial. Será que nesse novo paradigma, que ainda está sendo construído, uma atuação diferente da polícia no sentido de governança, de pluralização das formas de policiamento, implica em uma nova forma de legitimação da atividade policial?R - Uma das áreas desse livro que talvez tenha tido um pouco mais de tensão entre os autores, eu, Reiner e Sheptycki, foi essa questão. Eu acredito que todos nós concordamos que a transformação do policiamento tem sido exagerada, como demonstra o trabalho de Clifford Shearing e Tim Newburn outros. Nós tínhamos um sistema de policiamento público no passado e agora nós passamos a um sistema de governança da segurança com um corpo múltiplo de diferentes organizações policiais. Eu sou um pouco cético. Eu acredito que o policiamento foi sempre executado, desde o século XVIII, XIX, por múltiplas forças. Eu não acredito que o tema de policiamento foi substituído por algo diferente. Eu moro em Londres, então nós temos a polícia metropolitana de Londres. Hoje há mais ou menos o mesmo número de policiais metropolitanos que havia há vinte anos. A verba que é gasta com as polícias não diminuiu. Quando alguém tem sua casa invadida ou um assalto, em geral não chamam a segurança privada. Eu não acho apenas que não é verdade que o trabalho ou a função da polícia pública sumiu ou foi reduzida, como eu também não acho que o foco maior no policiamento privado é o caminho. Eu acredito que se nós tivéssemos um mundo somente organizado por polícias privadas, ele seria muito ruim. Seria como ter um sistema de saúde onde você só consegue ver um médico se pagar. A mesma coisa quando alguém rouba algo seu ou se você foi agredido, você só pode ter uma resposta policial se você pagar por ela. Então, eu realmente não acho que as polícias públicas estão desaparecendo ou mesmo diminuíram sua presença. Eu acredito que as polícias privadas, os seguranças, guardas etc, sempre estiveram lá. E defendo que o policiamento privado deve ser regulamentado de tão perto quanto o policiamento público. A polícia privada não deve ser apenas responsabilizada para com os interessados ou as partes interessadas. Se há uma mudança de paradigma com relação a esse policiamento múltiplo, então sim, eu concordo que nós precisaríamos realmente considerar e analisar como é realizada essa legislação. Mas há trabalhos que sugerem que talvez devêssemos olhar mais em direção a uma forma de responsabilidade policial que envolve não apenas essa responsabilização para polícias públicas mas também para guardas e seguranças, todos aquele que se envolve na segurança privada. Eu concordo que há uma necessidade dessa discussão sobre a legitimação. Mas acho que nós não devemos superestimar ou ainda exagerar na importância disso.
"Eu preferiria um mundo em que nós tivéssemos polícias públicas muito boas, que fossem eficientes, justas e democráticas. Esse seria o meu objetivo final."
P - Essa mudança de uma polícia que tradicionalmente foi pensada para executar pura e simplesmente aquela forma de policiar e agora deu uma guinada para coordenar o seu policiamento com ações de várias outras agências, como as de assistência social, saúde, educação, de diferentes níveis de governo, tem sido um enorme problema. Um desafio em muitos lugares do mundo. Como o senhor vê esse isso? Há diferentes formas de superar esse desafio? Há fórmulas alternativas, outros caminhos?
R - A resposta curta é não. Não há uma fórmula. Não é possível encontrar um sapato que caiba em todos os pés. Se houver uma fórmula, é aquilo que eu chamaria de coprodução da segurança, trabalhando em conjunto nesse objetivo. Isso depende na questão, da dificuldade nas organizações para determinar como isso deve ser alcançado. Vou dar um exemplo. Eu fiquei cinco anos trabalhando em hospital psiquiátrico como psiquiatra e também fiz observação de pacientes internados e como as doenças mentais produzem comportamentos que muitas pessoas consideram difícil de lidar. Pacientes gritando, falando coisas erráticas, agindo de formas muitas vezes que as pessoas sentem que está fora do controle, realmente. Então, a forma certa de responder a alguém que está tendo uma crise de saúde mental é através do sistema de saúde mental. Enfermeiras psiquiátricas, médicos psiquiatras, psicólogos e hospitais psiquiátricos. Alguém que está tendo um surto psicótico e age de forma a causar riscos a si mesmo e a outras pessoas não deve ser levado para a delegacia e colocado numa cela. Não é certo. É uma crise de saúde. E em quase nenhum lugar do mundo a primeira agência a responder é um agência de saúde. Quase em todos os lugares quando alguém age de maneira perturbada em um local público, a pessoa que será chamada para ajudar é um agente policial. Normalmente, um homem ou uma mulher nos seus vinte anos, com pouca experiência em saúde mental e sem nenhuma das habilidades de uma enfermeira ou um psiquiatra ou terapeuta. Se nós tivéssemos condições de pagar, eu gostaria de ver um serviço psiquiátrico de emergência. Mas isso não vai acontecer tão logo, será a polícia que vai responder. Então, quando nós temos um problema, bom, partimos desse problema. Saúde mental na comunidade é um problema e você terá a polícia envolvida porque ela tem o poder de usar força mínima para levar essa pessoa para um hospital. Você precisa de psiquiatras e atendimento psiquiátrico, então talvez você precise um hospital psiquiátrico com uma UTI, digamos, para que tenha um ambiente seguro para o paciente. Acho que devíamos estar falando sobre a coprodução de uma sociedade segura em que as pessoas que têm problemas de saúde mental possam ser ajudadas. Mas, novamente, não existe um tamanho único para tudo isso porque os serviços psiquiátricos, por exemplo, são diferentes no mundo todo. Mas acho que o cerne desse problema é: vamos observar, por exemplo, violência doméstica, violência nas ruas, consumo severo de álcool, o uso de drogas pesadas como heroína. Vamos começar com o problema que você quer solucionar e vamos achar uma forma de solucionar. Se os jovens estão atacando pessoas mais velhas nas ruas, por exemplo, vamos tentar encontrar uma solução para isso. Não vamos pensar que uma solução única vai se adequar para todos. Vamos pensar com criatividade, estamos no século XXI. Nós temos ciência, tecnologia e políticos brilhantes, grandes pesquisadores, entidades públicas, ONG´s como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Nós podemos usar essa criatividade. Então eu acho que se houver uma fórmula, é trabalhar em conjunto para encontrar soluções criativas para os problemas da sociedade. Mas não existe uma solução simples, em tamanho único, que serve para todo mundo. Entidades como o Fórum têm um papel fundamental em fornecer ferramentas para a comunidade, ferramentas para a polícia e outras entidades de segurança. Pensem de forma criativa em como é possível solucionar esses problemas em conjunto.
P - Falando então sobre a coprodução em segurança, passa muito pelo imaginário sobre o que é segurança, o que faz a polícia e o que ela deveria fazer. Esse imaginário, o que ela deveria fazer, quais seriam as soluções para os problemas, de certa forma é ditado pela mídia. A mídia intermedia muito dessas representações sociais. Os textos do professor Reiner são muito claros sobre isso. Essa relação entre mídia e polícia sempre existiu, claro, mas a partir da década de 50, com a difusão da televisão, essa relação mudou radicalmente. Continuou existindo, mas de uma maneira diferente. Agora, no século XXI, na virada do século XX para o XXI, com o surgimento da internet, das redes sociais, essa relação entre mídia e polícia muda de novo. Como o senhor chama atenção, agora todo mundo tem um aparelho celular com uma câmera. Então, é muito difícil que um policial possa agir na rua sem que alguém possa filmar aquela ação. Isso de fato mudou bastante a atuação dos movimentos sociais para denunciar desvios de conduta. Há outra mudança de ação sobre as ONG´s, como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que produz agora dados que de alguma maneira enquadram o debate. Fazem um framing do debate. Isso é uma tendência que nós notamos em muitos países, no Brasil também, que é uma forma como os movimentos sociais aqui no Brasil e essas ONG´s tem atuado, tentando inventar essas soluções. Mas, às vezes há limites para isso. Há limites governamentais de acesso, há reações políticas, há limites no meio jurídico. Eu queria ouvir do senhor sobre esses novos atores que surgem. No Brasil e na América Latina eles aparecem tardiamente. São atores da sociedade civil, são movimentos sociais, são universidades, centros de pesquisa e, foi ouvindo esses novos atores que na Inglaterra, por exemplo, surgem desde a década de 1960, 1970 e 1980 e aqui na América Latina começam a surgir à partir dos anos 1980, 1990. Qual o papel desses novos atores?
P - Eu mencionei o Stopwatch, onde se coleta evidências e se colocam esses dados abertos para um debate social. Eu acho que essas organizações, as ONG´s, como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, são fundamentais. Elas amplificam as vozes da população como um todo, ajudam a trazer evidências de pesquisa sistemática. Eu diria que é uma indicação de uma democracia saudável que essas ONG´s discutam. Por exemplo, na Inglaterra, organizações como a Liberty, a Stopwatch, a Stablewatch e todas essas, são cruciais. Elas não são partidárias nem nada, mas mantêm seus princípios sociais. Acho que as ONG´s tem uma importância decisiva, um impacto super-importante nas políticas públicas e eu falo isso com total certeza. A razão pela qual houve um rico debate para que as pessoas parassem, que polícia parasse de dar batidas policiais aleatoriamente nas pessoas, foi porque a Stopwatch estava sempre na demanda pública. Sempre que vinha uma reportagem no rádio, na televisão, uma matéria, algum membro do Stopwatch falava: aqui está a evidência. E mostrava. Olha aqui, pararam tantas pessoas aleatoriamente, para quê? Investigaram, etc. Aqui está a evidência. Olha aqui, houve discriminação, houve preconceito. Ou seja, era uma alternativa, não é? São perguntas que deveriam ser feitas mesmo para a polícia. Você pode dizer isso como sendo jovem, enfim. Ao invés de dizer: por que você está me parando? Por que está dando batida em mim? Você diz: você pode explicar para mim as bases dessa investigação, dessa batida policial? Mudando um pouco a linguagem. Você se importa se eu filmar a busca para que eu tenha uma gravação disso? Será que a polícia faria tantas buscas se soubesse que está sendo registrada, reportada? Então as ONG´s têm um papel em ajudar a criar responsabilização para as organizações policiais. Acho que isso é um papel extremamente importante.
Arthur Trindade - Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e Pesquisador do CNPq. Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Cidadania (NEVIS/UnB) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Juliana Martins - Coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Fonte: fontesegura.org.br