Como em várias áreas, falar dos acontecimentos de 2020 na segurança pública é falar de temas cujas fronteiras entre o presente e o passado estão embaçadas e poucos nítidas. Muita coisa aconteceu este ano e, sem dúvida, fazer uma retrospectiva é tarefa por demais ousada.
Começamos o ano, em fevereiro, em meio à crise no Ceará, em que o motim da polícia militar daquele estado coincidiu com a volta do crescimento dos crimes violentos intencionais no país. Só no primeiro semestre do ano tais mortes cresceram cerca de 7%.
A crise ganhou destaque nacional após o senador Cid Gomes ser baleado quando tentava desobstruir um prédio da polícia ocupado por manifestantes encapuzados com uma retroescavadeira. Mas o motivo principal por trás do movimento paradista foi a discordância de algumas poucas associações de policiais, em geral lideradas por simpatizantes do Governo Bolsonaro, com o acordo salarial que estava sendo negociado pelo governo cearense, do PT.
Só após a ida de integrantes das Forças Armadas e a aprovação pela Assembleia Legislativa do Estado de uma lei que proíbe anistias para casos como o ocorrido, é que os policiais voltaram ao trabalho. Movimentos semelhantes e que tiveram origem na demanda por melhores condições de trabalho e salário também ocorreram em SC, RN, PB, MG e ES. Por muito pouco o país não perdeu o controle de suas policias militares.
Quando da chegada da pandemia, as tensões com as polícias continuaram e, de certa forma, foram consideradas na decisão de o país não ter decretado um lockdown mais radical, na medida em que estados e municípios teriam dificuldade de enforcement. Em paralelo, uma forte reconfiguração da cena do crime muda os padrões e muitos dos crimes contra o patrimônio caem (roubos, furtos, etc). Mas sobem os crimes contra a mulher e os crimes sexuais.
Em abril, a Polícia Federal, com apoio do DEA/EUA e da Interpol, prende Fuminho, maior traficante sul-americano, em forte golpe contra o PCC. Várias foram as operações desencadeadas a partir deste momento e que visaram asfixiar o financiamento do PCC, com apreensões de volumes crescentes de drogas, também pela PRF, e bloqueio e confisco de bens.
Vários crimes conhecidos como “novo cangaço” começam a ocorrer em estados como São Paulo, Santa Catarina e Pará. O episódio do assassinato de Beto, no Carrefour de Porto Alegre, explicitou os tênues limites entre segurança privada e policiais, bem como reforça aquele que pode ser visto como o grande assunto do ano na segurança pública: os padrões operacionais das polícias influenciados pelo racismo estrutural e pelas altas taxas de letalidade e vitimização policiais.
O sistema prisional, por sua vez, foi esquecido durante a pandemia, não obstante a taxa de contágio entre presos ser mais de 47% superior à média da população. Agora, nas discussões sobre as prioridades de vacinação, os presos, que mundialmente costumam ser imunizados nas primeiras fases de campanhas de vacinação, foram retirados das prioridades do Plano Nacional de Imunizações.
Estes são, por certo, apenas alguns exemplos de quão desafiador foi este ano. Muitos outros fatos e acontecimentos se fizeram presentes e explicitam a falência do modo como pensamos e fazemos segurança no Brasil. Uma área de política pública tratada na chave da moral e pouco permeada pela ideia de uso de evidências e planejamento estratégico. O Fonte Segura teve um grande desafio de traduzir e analisar tantas frentes e temas, mas, acreditamos, tem conseguido mostrar o que está por trás dos números e dos fatos que pautam a área no país.
Vamos dar uma pequena parada para recuperar forças, mas, no início de janeiro, voltaremos com as edições inéditas. Por enquanto, vamos publicar materiais selecionados e análises que marcaram o ano. Que 2021 seja capaz de renovar nossa crença em mundo mais justo e pacífico.
Fonte: fontesegura.org.br