“Meu pai, um homem negro, pobre, que estudou com a ajuda do salário de faxineira que minha mãe recebia. Com esse dinheiro, ele pagou concursos, habilitação, sem minha mãe, meu pai não ia ser nada. Meu pai fez um concurso atrás do outro. Não entrou na Polícia Rodoviária Federal por causa de uma questão, mas entrou na Polícia Civil. Ele foi agente de trânsito, depois guarda municipal, passou no Banco do Brasil e entrou na Polícia Civil”.
O relato acima é da jovem Milena Morais, de 21 anos, filha do policial civil Marcos Luís Morais, de 48 anos, o Marcos Talibã, morto numa emboscada na última quinta-feira, 17, no município de Umbaúba, junto com o colega também policial, Fábio Alessandro Pereira Lopes, de 47 anos.
Em clima de tristeza, as narrativas das duas mostraram um homem simples, mas com uma vontade de querer ir sempre mais longe. Logo cedo entrou para a Marinha do Brasil e ao sair, aproveitando do conhecimento da sua mãe, Dona Dejanira Morais, que era cozinheira no Hiper Bompreço, Marcos foi contratado como embalador.
Por lá, conheceu a sua esposa e no espaço de 1 ano, namorou, noivou e casou com Helenice de Oliveira, que também era empacotadora no supermercado. “Depois que a gente casou, compramos o terreno e começamos a construir essa casa. Para terminar, um de nós tinha que sair para pegar a rescisão e terminar a casa. Depois ele foi promovido a auxiliar de frente de loja e eu trabalhava como diarista para sustentar a casa. Quando Milena chegou, ele me incentivava a fazer alguma coisa que eu pudesse ficar em casa, foi aí que fui fazer o curso de cabeleireira”, conta Helenice.
Após o pedido de demissão, Helenice passou a fazer faxinas para ajudar ao esposo a conseguir passar em um concurso público e logo vieram as conquistas. De início, Marcos passou a trabalhar como agente de trânsito e passou no concurso para a Guarda Municipal de Aracaju. Em seguida, ele foi aprovado no concurso para o Banco do Brasil e também da Polícia Civil, chegando a trabalhar durante uma semana na agência do município de Itabaiana e desistindo para assumir de vez o cargo que viraria uma da suas maiores paixões: agente de Polícia Civil.
“No início ele não gostava, mas depois isso se tornou a vida dele. Ele deu a vida dele pela polícia, ele gostava do que fazia. Eu acredito que ele foi muito feliz na escolha dele no sentido que ele se realizou. Recebi muitos elogios dos colegas. Todos os dias a gente esperava ele chegar. E quando ele chegava dizia, “a minha esposa está bonita e dava um beijo”. Depois ia ao quarto de Milena e beijava ela. Quando ele estava indo, eu levava ele até a porta, entregava a comida dele e me dava um beijo. Mesmo que eu não estivesse bonita, ele sempre dizia que eu estava bonita. Um grande homem, pai e filho, fez muito pela mãe”, pontua a esposa.
Foi na polícia que recebeu o apelido de Marcos Talibã e deixou o seu cabelo e barba crescer, algo que no início não foi bem aceito por Helenice. “Ele dizia para mim que um dia queria ter cabelo grande e pegava o meu cabelo e colocava na cabeça dele, eu findei aceitando. Eu via ele como pessoa, não via nem o cabelo e nem a barba. Eu via o Marcos, meu marido, meu amor da minha vida. Ele deixou o cabelo crescer e toda semana ele lavava e eu torcia fio por fio, um por um, e colocava ‘cremesinho’. “Nice, corte o meu bigode, mas a minha barba não tire nenhum fio”. Ele chegava tarde da noite e pedia para eu fazer as unhas dele na madrugada. Ele era vaidoso, mas roupa social ele não usava, ele gostava de ser livre e simples”, relata emocionada.
Segundo a filha Milena, em alguns momentos o pai até confundia a personalidade exercida por ele enquanto se transformava no Marcos Talibã. Ela conta ainda o quanto o pai sofreu por ser negro e uma autoridade policial.
“Existia o Talibã e existia o meu pai. Às vezes, o meu pai chegava aqui dentro e ele era o Talibã. Eu dizia, meu pai eu sou sua filha, esqueça isso, esqueça esse lado seu. Ele desmontava e era o meu pai, Marcos, Teu, painho, meu painho que eu dava a benção todos os dias, porque eu não sabia se ele ia voltar. Toda noite ele dizia, “te amo minha filha” e eu dizia, ama papai? Ele respondia: “eu amo muito”. Um homem preto precisou estudar muito para chegar aonde chegou. Mesmo no seu último dia, meu pai sofreu racismo. Muitas vezes, ele na viatura dava uma carona à gente e escutávamos “olha a qualidade do policial”. Por que o cabelo e a barba incomodavam muito, um homem preto dentro de uma viatura incomoda, uma autoridade preta incomodava muito as pessoas. Mas, meu pai enfrentou isso a vida inteira com um sorriso no rosto. Ele nunca entrou em casa reclamando o que as pessoas falavam dele, ele não absolvia isso, sempre deu a volta por cima de cabeça erguida”, lamenta a filha.
Sobre seu trabalho, segundo a esposa, Marcos era reservado e de poucas palavras dentro de casa. Ela conta ainda que no dia da fatalidade em Umbaúba, a notícia chegou através da televisão enquanto fazia o almoço.
“Eu perguntava a ele onde estava lotado e ele não dizia. Ele não gostava de falar nada da polícia para nós, ele tinha medo e se preocupava com a nossa segurança. Ele dizia para a gente não assistir o jornal para não escutar coisas ruins e foi justamente pelo jornal que eu soube da morte dele. Eu estava na cozinha e ouvi o nome Marcos Luiz Morais e o nome do outro rapaz e corri. Quando cheguei para ver apareceu o letreiro, policiais mortos. Entrei em desespero e não acreditava. Mandaram uma foto terrível para mim e só aí acreditei. Ele deu a vida dele para defender a sociedade”, reforça Helenice.
No início da semana, Marcos trouxe para casa o peru para realizar a famosa ceia de Natal com a família, mas esse ano o Natal não terá o mesmo brilho como de anos anteriores. “Essa semana ele trouxe o peru de Natal, está no congelador. Todo ano a gente tinha Natal, ele nunca deixou a gente passar o Natal sem o peru e sem as frutas que ele gostava, era damasco e uva-passa. Dona Deja enfeitava o peru com as frutas e toda hora ele passava e roubava uma fruta. Esse ano, não conseguiremos fazer nada”, finaliza a esposa.
Já por volta das 18h também do sábado, foi a vez de encontrar com os familiares do policial Fábio Alessandro Pereira Lopes. Na residência, a matriarca, a professora aposentada Gisélia Pereira aguardava a equipe de Reportagem em companhia dos filhos José Maurício e André Pereira. Além deles, a esposa de Fábio, Nilda Souza, e os filhos Breno Alessandro e André Passos.
Apesar do clima de tristeza, a conversa girou em torno da felicidade demonstrada por Fábio nos últimos meses. “Ele era muito brincalhão e posso dizer que nos últimos anos ele vinha vivendo o melhor momento da vida dele. Ele estava de bem com toda a família, isso era visível e perceptível por todo mundo. Ele esbanja a felicidade atual através desse impulso em reunir todo mundo, através do convívio com a esposa, da relação com os filhos, da relação conosco”, disse o irmão do meio, o médico José Maurício, que reside no estado do Ceará. Fábio tinha ainda dois irmãos por parte de pai, os gêmeos Maurício Leonardo e Pedro Henrique.
Nascido no Rio de Janeiro e o mais velho de três irmãos, Fábio Alessandro chegou a Sergipe aos 12 anos, com a mãe o pai, o senhor José Maurício Melo Lopes, e logo demonstrou grande aptidão pelos estudos, ingressando aos 17 anos no Curso de Ciências da Computação na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Atualmente, ele cursava o 8º período do curso de Direito.
“Três filhos unidos e que nunca me deram trabalho, sempre gostaram de estudar. Fábio sempre se destacava porque ele gostava muito. Aos 17 anos passou na Universidade Federal de Sergipe para informática. Fez o concurso público para a antiga Prodase, trabalhou, se adaptou e logo passou também no Tribunal de Justiça e na Polícia Civil também, fazendo a opção pela polícia”, disse Dona Gisélia toda orgulhosa. Fábio estava na Polícia Civil desde 2002, completando 18 anos dedicados à Corporação.
A mamãe continua com os elogios: “Ele amava a profissão dele. Graças a Deus só tinha elogios de quem trabalhou com ele. Era um bom filho, amigo, companheiro. Eu sempre dizia aos mais novos para obedecer ao irmão, porque ele era o mais velho. Ele só me deu gosto, muito gosto. Sempre foi ligado à família. E nos últimos tempos, ele ficou mais ligado ainda. Ele procurava, ligava e sempre me dizia “minha mãe, a gente tem que ficar sempre muito unidos”, e ele buscava isso. Fábio era muito sério, mas gostava de brincadeiras em família. Ele era sério porque já era da natureza dele, mas era muito alegre”, acrescenta a genitora.
Essa seriedade é vista de outra forma pelo filho mais velho de Fábio, o advogado e perito judicial, Breno Alessandro. “Minha avó falou que meu pai era muito sério, mas era porque ele gostava das coisas muito certas. Ele era um pai que cobrava muito, mas ele sempre falou que queria o melhor do melhor para a gente. Ele queria que eu e o meu irmão André tivéssemos um futuro promissor igual ao dele, que fôssemos pessoas estudiosas. Meu pai sempre priorizou a educação e falava que o nosso crescimento deveria vir através da Educação”, explica o filho.
Breno elencou algumas características do pai narradas pelos próprios colegas de trabalho. “Meu pai priorizava a união da família. Ele era a pessoa que queria unir a família, que marcava os encontros, viagens e nós sabíamos desse espírito dele. Gostava das coisas muito organizadas, ele era muito organizado e passava isso para gente, só que não tínhamos a noção de que ele também era assim no lado profissional. Isso foi passado para a gente a partir da partida do meu pai, acabamos descobrindo que o Fábio pai, irmão e filho também era o mesmo Fábio na Polícia Civil. Muitas pessoas falaram que meu pai era um exemplo de homem como profissional e como pessoa”, pontuou Breno.
Em relação à preocupação de Fábio com o futuro dos filhos, Breno descreve que ele construiu esse caminho com maestria e conseguiu deixar um legado e exemplo único, que é refletido e respeitado por ambos.
“Meu pai me deixou formado em Direito, sou perito judicial. Meu irmão está no quinto período de Medicina e quem conseguiu fazer isso com a gente foi o meu pai. Ele sempre prezou pela nossa educação, sempre nos colocou em colégios bons. Se eu mandasse um e-mail para ele e tivesse uma vírgula fora do lugar, ele me dava uma bronca, mas era porque ele queria que eu fosse bom no que eu fazia”, brinca o jovem.
Recentemente, há cerca de dois meses, Fábio criou uma nova paixão: a pedalar com a esposa Nilda. Segundo ela, ele passou a se cuidar mais e era só felicidade. A função de esposo também era exercida com muito esmo.
“Foi um excelente marido, não tenho nem palavras. Como pai, tenho o meu filho que ele assumiu como filho, ele foi um excelente pai, muito carinhoso com todos. Ele comprou a bicicleta e o meu filho tinha uma bicicleta em casa. Foi aí que ele falou “vamos pedalar também”. Ele tomou gosto. Ele ficava uma semana aqui e outra lá no trabalho e saíamos para pedalar duas, três vezes por semana. Quando ele estava aqui os dias passavam voando, parecia que não era uma semana e sim dois dias. Essa semana ele saiu na bicicleta com os braços para o ar e pedalando forte e gritando “olhe, eu sei andar de bicicleta”. Ele estava muito, mas muito feliz”, conta Nilda.
Para o engenheiro e policial militar André Pereira, irmão mais novo, Fábio era um grande exemplo de ser humano. “Era um cara muito obstinado com as conquistas e desejava que todos pudessem alcançar. Nos momentos de lazer a seriedade se transformava em muita alegria. Todas as reuniões recentes foram organizadas por ele. A gente não iria fazer o Natal por causa da pandemia e ele era a única pessoa que queria que acontecesse. Inicialmente a gente organizou o Natal e por conta dessa segunda onda da Covid, a família se reuniu e achou por bem que a gente se resguardasse e deixasse para próximo ano. Ele ficou insistindo e falando para a gente tentar, isso só mostra o quanto ele era família. O lazer dele era com a família e sempre foi assim. Ele sempre foi referência para mim. Muito dos meus gostos musicais partiram dele, o homem que sou, devo aos meus dois irmãos que foram motivo de muito orgulho para mim”, ressalta o irmão.
Sobre planos para o futuro, Fábio sempre se mostrou um grande sonhador. Segundo a sua esposa, metas e novas conquistas a serem alcançadas não lhe faltavam. “Ele tinha muitos planos. A curto prazo, o ano que vem ele terminaria a faculdade, depois ele ia se dedicar a ficar mais em casa para estudar para outro concurso. Quando se aposentasse, ele dizia que queria viajar mais, conhecer lugares que nunca conheceu. O sonho dele sempre foi viajar e estar em família. Só para agora ele já tinha planejado três viagens. Ele amava o litoral”, diz a esposa.
Em relação à morte de Fábio, seu irmão José Maurício afirma que se trata de uma sucessão de falhas. “A morte dele é fruto de um conjunto de falhas, isso a gente não tem dúvida. São falhas que todos os dias levam à morte de vários policias e que, infelizmente, a sociedade hoje não consegue perceber isso, pelo contrário, o discurso mais forte hoje é contra a polícia. A morte dele é muito cara para a gente representa esse conjunto de falhas que tem a marca do nosso país”, pontua Maurício.
Por fim, a mãe de Fábio, Dona Gisélia, deixa a sua indignação pela morte do filho. “Ele não queria ser polícia, ele tomou gosto. Nunca na minha vida imaginei ficar sem o meu filho. O sistema é cruel, por isso, eu devo ao sistema a morte do meu filho”, finaliza a mãe.
Nesta semana, os Policiais Civis Marcos Luís Morais e Fábio Alessandro Pereira Lopes serão agraciados com a medalha de Honra ao Mérito concedida pela Assembleia Legislativa de Sergipe (ALESE - Assembleia Legislativa de Sergipe).
Fonte: fanf1.com.br