Na tarde de 5ª feira (20.jan.2022), mandei uma mensagem para minha amiga de escola para dar a notícia. Afinal, ouvíamos juntas o som de Elza Soares. Vimos juntas essa mulher levantar da cadeira, onde esteve sentada durante todo o seu show, com sua minissaia de paetê dourado. Se apoiou na mão de um de seus companheiros da Banda Farofa Carioca e levantou.
Já estava com a coluna debilitada. Ela levantou devagar e, do seu lugar, inesperadamente pulou. Um, 2, 3 pulos… 4, 5… Ela não se conteve e pulou, ainda segurando a mão do parceiro e levando o povo ao delírio. Eu tinha acabado de tocar naquele mesmo palco. Eu e a Banda Soatá. No nosso projeto misturávamos rock and roll e ritmos amazônicos. Eu, naquela época cantando rock e batendo cabeça, mergulhada ali, na Escola Elza Soares, aprendi que tinha muito chão pela frente. Eu cantava um rock. Elza era o rock.
Ser cantora não é carreira que se restrinja à ideia de profissão. Tô falando em carreira no sentido radical do termo: caminho. Não descanso “meu instrumento” depois de um dia de trabalho. Em uma medida muito profunda minha voz rejeita qualquer ideia de uso. Não uso minha voz. Minha voz sou eu. Meu canto sou eu. A todo tempo minha voz me identifica.
Cantar é um modo de ser e estar no mundo. A trajetória de Elza comprova isso. Do barraco para a rádio, denunciando a própria miséria ela riscou a invisibilidade e atualizou sua presença no mundo. Ela foi todas nós. Eu nasceria 30 anos depois. Ela já era minha voz. A vida trágica da Elza se transmutou naquela voz que rasgava sua garganta, que rasgava também a gente. Rasga.
Escuto seu som e lembro que não posso parar. Quero ser assim, irreprimível como ela. Quero me reinventar. Vencer o medo da maldade das pessoas para viver e amar. Quero tocar o meu tempo. Elza, inteligentemente, tocou todos os seus tempos. Aprendi demais. E ainda estou estudando essa artista que atravessou décadas se compondo com a ideia de desejo que dança dentro da gente. Se tornando nosso desejo. Ubuntu. Eu canto porque ela cantou. Ela pavimentou nosso caminho.
Mulher-preta-artista, voluntariosa. A vida de Elza me lembra todas as mulheres que sobreviveram aos atentados violentos dentro da própria casa. Tantas. Ela me lembra da alegria efusiva da nossa gente preta nas quebradas do Brasil que, mesmo com pouca ou nenhuma estrutura, sorri e vive o êxtase dos aquilombamentos urbanos ou nos campos, dos afoxés, das escolas de samba, dos fluxos do rap, do côco, do maracatu, do forró, do arrocha.
E isso num é ode à pobreza, não. Isso aqui é tecnologia de afeto e de sobrevivência. Isso aqui é vontade de viver. Penso em Elza e vou para esse lugar de encontro e festa do povo preto, resiliente, glorioso e revolucionário. A potência da cultura no ocidente mesmo diante de uma campanha de extermínio. Mostra de beleza e luminosidade.
Eu acredito que, quando a máquina-corpo não comporta mais a nossa existência, a gente se expande e abraça integralmente o todo. Diante da notícia da expansão de Elza, minha amiga de escola, do outro lado do oceano, me respondeu docemente: “Vamos ouvir muito a Elza hoje! E sempre!”. Elza somos você e eu. Vamos celebrar Elza! Celebrar sua vida e seu legado!
Elza Soares, nós todas, a favelada, a mãe que enterrou os filhos, a sobrevivente, a voz negra da orquestra, a imperatriz do samba, a deusa mulher, a cantora brasileira do milênio, a amada, a mulher do fim do mundo. Elza, seu nome é agora.
Por ELLEN OLÉRIA