O Brasil voltou duas décadas no controle responsável de armas e munições nos últimos três anos e, se não agirmos rápido, esses retrocessos custarão décadas. A aprovação do Estatuto do Desarmamento em 2003 foi um marco na política de segurança pública. Afinal, não apenas as evidências científicas mostram uma correlação positiva entre o número de armas de fogo e o número de homicídios, como também a sua causalidade. A campanha na qual a população entregou voluntariamente mais de 500.000 armas para destruição em 2004 nos faz lembrar um tempo de esperança. Entre 2004 e 2007, vimos não só a interrupção no crescimento dos homicídios pela primeira vez em 20 anos, mas experimentamos uma redução efetiva na taxa dessas mortes, de 12%. Atualmente, cerca de 50 mil mortes violentas intencionais são registradas no país por ano, sendo que 78% ocorrem com emprego de arma de fogo, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Porém, nem tudo eram flores. O lobby das armas surgiu e começou o seu incansável trabalho no Congresso Nacional. O primeiro sinal de força foi em 2005, no referendo sobre a proibição da venda de armas no Brasil. Desde a tentativa de inviabilizar o pleito até a bem sucedida campanha que deu ao “não” a vitória, sabíamos que estávamos diante de uma estrutura muito bem financiada com um objetivo claro: desmontar o que havia sido recentemente construído e ainda com tantos pontos a serem melhorados. O resultado do referendo foi respeitado, e o número de lojas de armas disparou.
Ao longo dos anos, houve inúmeras tentativas de desmonte e algumas flexibilizações, como, por exemplo, a prorrogação da anistia de armas ilegais até dezembro de 2008 e mudanças nas normas do Exército em 2017[1] que permitiram o porte de armas para atiradores e caçadores entre o local do acervo e local da prática de tiro ou caça. As investidas para desconfiguração completa do controle de armas conseguiram ser bravamente barradas com um intenso trabalho de organizações da sociedade civil, academia, profissionais da segurança e parlamentares.
O jogo mudou completamente no final de 2018. O resultado das eleições levou para o centro do poder executivo um dos maiores representantes do lobby das armas, o próprio presidente. Com ele, outros representantes da bancada da bala que, ao longo dos anos, tiveram suas tentativas de mudança no estatuto do desarmamento frustradas, também se fortaleceram. Se não conseguiram concretizá-las via processo democrático no parlamento, em que a diversidade da população está representada, adotaram instrumentos para fazer valer sua vontade à força: decretos presidenciais.
Desde 2019, foram publicados 14 decretos, 11 portarias e 4 instruções normativas que desconfiguraram o controle de armas no Brasil. Dentre as principais medidas estão: a eliminação do poder de decisão dos delegados de Polícia Federal para autorizar a compra de armas; a permissão de que qualquer pessoa compre armas que antes eram restritas às forças de segurança, em razão do seu potencial de fogo; ampliação do tempo de registro das armas de 5 para 10 anos; aumento da quantidade de armas e munições que podem ser adquiridas por cidadãos, especialmente para CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), que podem adquirir até 60 armas, incluindo fuzis; retirada de itens estratégicos do controle do Exército, como as máquinas de recarga, inviabilizando o controle da produção de munições.
Essas mudanças permitiram que um pequeno grupo fizesse uma verdadeira corrida armamentista. Entre janeiro de 2019 e setembro de 2021, cidadãos registraram mais de 250.000 novas armas no Sistema Nacional de Armas (SINARM). CACs registraram mais de 300.000 novas armas no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (SIGMA). Seu acervo chegou a mais de 700.000 armas, superando em muito as armas de órgãos públicos registradas no SINARM, o que inclui a Polícia Civil em todo o Brasil.[2] O mesmo foi observado com as munições. Um levantamento do jornal O Globo mostrou que em maio de 2020 eram vendidas em média 2000 munições por hora no Brasil.[3]
O meio milhão de armas que o Brasil lutou por quase duas décadas para tirar das ruas voltou a circular em menos de três anos de absoluto descaso com as evidências científicas e desrespeito ao desejo da população, que é contrária à flexibilização da posse de armas — e com muito mais capacidade letal do que antes. Os efeitos dessa política serão sentidos ao longo de décadas, conforme essas armas vão sendo extraviadas, perdidas, roubadas ou simplesmente trocam de mãos sem que os órgãos responsáveis saibam.
O funesto combo de desmantelamento da política de controle de armas promovido pelo Governo Federal tirou da Polícia Federal e do Exército Brasileiro, principais órgãos de controle, o seu poder de fiscalização — e piorou muito as condições de trabalho das polícias. A Militar, porque a permissão para que mais armas cada vez mais potentes circulem sem controle aumenta o risco do policial na rua, e a Civil, porque os instrumentos de rastreamento que permitem a elucidação de crimes são enfraquecidos. Adicionalmente, os retrocessos representam uma ameaça à democracia, em um momento em que ataques físicos e ameaças são elementos cada vez mais presentes no debate político.
Nesse contexto, o trabalho de resistência se intensificou. Diferentes partidos políticos e organizações da sociedade civil denunciaram as flagrantes ilegalidades das medidas adotadas pelo Governo Federal e suas graves consequências ao Supremo Tribunal Federal e têm jogado luz sobre o processo de interferência da Presidência da República nos órgãos de controle junto ao Tribunal de Contas da União.
Essa ingerência está longe de acabar. No apagar das luzes de 2021, o lobby das armas volta a mostrar suas garras no Congresso Nacional. Em uma tentativa de manobra no Senado Federal, trabalham para acelerar a votação do PL 3.723/2019, que consolida os privilégios concedidos aos CACs e acaba com a marcação das munições, inclusive para as forças de segurança. Continuaremos resistindo para proteger milhares de vidas e o nosso futuro.
[1] https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/20481314/do1-2017-03-20-portaria-n-28-colog-de-14-de-marco-de-2017-20481229
[2] Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação
[3] Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/vendas-de-municoes-dispararam-no-brasil-em-maio-foram-vendidos-mais-de-2-mil-cartuchos-por-hora-1-24467316
MELINA RISSO - Diretora de Pesquisa do Instituto Igarapé.
CAROLINA TABOADA - Pesquisadora do Instituto Igarapé.