Em 2021, o debate sobre segurança pública e polícias mudou de direção. Antes discutia-se a necessidade de mudanças no modelo organizacional das polícias e na gestão da segurança pública. Agora debate-se os perigos da politização das polícias. Alguns jornalistas e analistas políticos passaram a levantar dúvidas se, no caso de uma crise institucional, as Forças Armadas e as Polícias iriam seguir o que determina a Constituição Federal e o ordenamento jurídico nacional.
O simples fato de esse tipo de questionamento existir é bastante assustador. É desalentador constatar que, após 33 anos da promulgação da nova Constituição Federal, ainda persistam dúvidas sobre a adesão aos valores democráticos por parte das instituições policiais. Tais dúvidas são resultado do intenso uso político que o presidente fez das Polícias e das Forças Armadas. Desde o início do seu mandato, Bolsonaro tem buscado transformar o grande apoio que possui entre policiais e militares para ameaçar as instituições democráticas, especialmente o Supremo Tribunal Federal.
Em setembro, a crise política se acentuou e trouxe as polícias para o centro das atenções. Criou-se uma grande expectativa sobre o que poderia acontecer nas manifestações convocadas por apoiadores do presidente Bolsonaro para o dia da Independência. A pauta de reivindicações envolvia o fechamento do STF. Temiam-se conflitos entre apoiadores e opositores ao governo. A participação de militares e policiais da ativa no ato político também causava grande preocupação.
Felizmente, nada disso aconteceu. A participação de policiais da ativa nas manifestações foi pequena. Não houve conflitos e aconteceram apenas pequenos incidentes. No mundo real, os problemas eram outros. Apesar do apoio ao governo federal, tem aumentado o número de policiais ressentidos com a polícia econômica e sanitária de Bolsonaro. As promessas de aumento salarial e valorização profissional tampouco foram cumpridas.
No âmbito do poder executivo, a agenda de reformas da área de segurança pública continuou congelada. Em abril, Anderson Torres tomou posse como ministro da Justiça e Segurança Pública. Torres é o terceiro ministro da pasta e, assim, como seus antecessores, não apresentou diretrizes para área. As discussões sobre as medidas necessárias para aperfeiçoamento do Sistema Único de Segurança Pública foram deixadas de lado. A implantação do Sistema Nacional de Estatísticas de Segurança Pública anunciada pelo ex-ministro Sérgio Moro não saiu do papel. O país segue sem um sistema governamental de estatísticas confiáveis sobre segurança. E o programa Em Frente Brasil, lançado em 2019 e voltado para redução dos homicídios, praticamente foi abandonado.
A única pauta na área de segurança pública que o governo tem se esforçado para implementar é a política de flexibilização da venda e posse de armas. Em fevereiro, o governo Bolsonaro promulgou novos decretos que flexibilizam ainda mais o Estatuto do Desarmamento (EDA). Desde 2019 já foram publicadas 30 medidas do gênero com essa finalidade, o que levou ao aumento recorde do número de armas em circulação.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de armas nas mãos de civis dobrou desde 2019. Em dezembro de 2020 o país contava com 2.077.126 armas em arsenais particulares, incluindo as categorias especiais de atirador desportivo, caçador e colecionador (CACs) e armas particulares de policiais, demais profissionais da segurança pública e militares do Exército. É possível dizer que, em cada grupo de 100 brasileiros, há ao menos uma arma particular disponível.
Os números do Anuário mostram que o Brasil vive uma corrida armamentista estimulada pelo governo federal. Possivelmente, a flexibilização da venda de armas é uma das poucas promessas de campanha que Bolsonaro se esforça para cumprir. Entretanto, a política de armamento vem sendo implementada à revelia do Congresso Nacional. Ao invés de propor mudanças no Estatuto do Desarmamento, o governo federal tem preferido implantar sua política através da publicação de decretos executivos e portarias ministeriais.
Bolsonaro não está impedido de propor mudanças no Estatuto do Desarmamento. Mas deve fazê-las dentro do processo legislativo previsto na Constituição. Em função disso, a ministra Rosa Weber, do STF (Supremo Tribunal Federal), suspendeu a aplicação dos quatro decretos e solicitou explicações ao governo sobre sua incompatibilidade com o Estatuto do Desarmamento.
Se no poder executivo a agenda de segurança pública continuou congelada, no legislativo aconteceram poucos avanços. Em agosto foi aprovada a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. O projeto de lei 2.108/2021 revogou antiga Lei de Segurança Nacional (LSN) que foi promulgada em 1983, ainda sob a vigência do regime militar.
A Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito tipifica os crimes contra as instituições democráticas; os crimes contra o funcionamento das eleições e os crimes contra a cidadania. Entre os crimes, estão golpe de Estado, interrupção do processo eleitoral, comunicação enganosa em massa e atentado ao direito de manifestação. As penas previstas variam de um a cinco anos de prisão. No capítulo que trata dos crimes contra a cidadania, fica proibido impedir, com violência ou ameaça grave, o exercício pacífico e livre de manifestação de partidos políticos, movimentos sociais, sindicatos, órgãos de classe ou demais grupos políticos, associativos, étnicos, raciais, culturais ou religiosos.
A lei também prevê o crime de incitar, publicamente, a animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade. Haverá punição para quem impedir ou perturbar a eleição ou mesmo a aferição de seu resultado com a violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação. Ao contrário da LSN, a nova lei não considera crime a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, reuniões, greves, aglomerações ou qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais.
Ainda no âmbito do poder legislativo, as discussões sobre a reestruturação das polícias avançaram pouco. Apesar dos esforços de alguns deputados, o Projeto de Lei que trata do tema (PL nº 4.363 de 2001) ainda não teve um amplo debate. O que é preocupante, pois os debates sobre o novo arcabouço jurídico para as polícias militares brasileiras são muito bem-vindos neste momento, sobretudo porque os estatutos que ainda regulam essas corporações são remanescentes do período de exceção. Em função da complexidade e do impacto, a nova legislação demanda uma ampla discussão que inclua, além das polícias, segmentos da sociedade civil e outros operadores do direito.
Em resumo, podemos dizer que, além da instrumentalização política das polícias e a flexibilização do Estatuto do Desarmamento, não há nenhuma outra política federal para a área de segurança pública. Em 2021, a segurança pública segue à deriva.
ARTHUR TRINDADE M. COSTA - Professor da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.