A pandemia de Covid-19 evidenciou e acelerou relações sociais, econômicas, políticas e jurídicas tanto presencial quanto virtualmente. Tanto local, nacional quanto internacionalmente. Em termos comparativos, ficou nítido como problemas extrapolam a esfera originária, no caso a saúde, e “contaminam” outras áreas como, por exemplo, a economia, a educação, a política, entre outras. Ainda ficou nítido como problemas locais, nacionais ou internacionais requerem políticas públicas que podem necessitar de um complexo sistema como solução. E, para elaboração de soluções, há necessidade conhecer os problemas e uma das possibilidades é a partir dos estudos e dados acerca do problema.
O ataque hacker em dezembro de 2021 ao Ministério da Saúde contribuiu para um “voo às cegas” dos gestores, dos profissionais da saúde e dos usuários do SUS. Na área da Segurança Pública há a mesma relação, mas o voo às cegas começa no possível planejamento, pois não há dados consolidados locais, nacionais e internacionais ou não há a convicção de seu uso para a implementações de políticas. Para exemplificar, podemos utilizar os dados sobre homicídios no Brasil.
Segundo o Atlas da Violência 2020, em 2018 houve uma redução na taxa de homicídio, tanto considerando as taxas nacionais quando regionais e na maioria das unidades federativas. Entre as explicações, foi considerado o quadro analisado até 2017 (mudança demográfica; o Estatuto do Desarmamento; e políticas estaduais de segurança); a diminuição dos conflitos fatais entre facções penais; e a piora dos dados, aumentando em 25,6% o total de mortes violentas com causa indefinida (MVCI), totalizando 12.310 pessoas sem que se soubesse o motivo da morte.
Todavia, saber a causa da morte ainda não significa a garantia dos ritos processuais. Como salienta Arthur Trindade, não há um sistema nacional de indicadores para mensurar a taxa de elucidação de homicídios brasileiro. Segundo o Instituto Sou da Paz, em 2016 apenas 12 estados dispunham de dados para mensurar e foi possível perceber discrepâncias de elucidação. Alguns com taxas de 80% (MS, SC e DF), enquanto há outros com taxas de 15% (PR e RJ). Trindade aponta que o baixo investimento na investigação (perícia, número de agentes, unidades especializadas), aliado à baixa articulação entre agentes investigativos e Ministério Público, contribuem para a baixa elucidação.
Entretanto, a falta de uma cultura do planejamento, produção, tratamento e a análise dos dados é literalmente sistêmica. Não há o “cuidado” no sentido de relevância político-governamental e investimento na estrutura na ponta (PM, GC, entre outros), nas atividades de suporte e na produção do inquérito policial (investigadores, peritos, delegados) como também não há no Ministério Público (MP).
O Instituto, em 2018, solicitou informações sobre o número do processo relativo a homicídio doloso, assim como a data do fato e a data da denúncia relativas de 2015 a 2017. Não foi possível ao MP atender a solicitação em quatro estados, e dois deles não responderam. Além disso, não há uma padronização nacional no MP, pois nove estados atenderam de forma incompleta. Não há, por exemplo, em alguns sistemas do MP, a diferença entre homicídio tentado e consumado.
A partir da análise dos dados, o Instituto apresentou ao MP algumas sugestões de intervenção que acredito que podem ser para as demais instituições do Campo de controle e para todas as modalidades tipificadas como crimes: organização e centralização das informações nacionais com plataforma digital nacional e padronização de todas as fontes de informações.
Este seria apenas o primeiro passo para a incorporação de percepções do problema e planejamento e implementações de políticas fundamentadas em dados. Superada a ausência de dados, como as MVCI, e a sistematização das informações nacionalmente em plataformas digitais, ainda há a necessidade da compreensão de que a construção dos dados é de acordo com a dinâmica do crime para apresentar soluções mais precisas.
Ainda utilizando as mortes violentas como exemplo, há os 12.310 registros que necessitam ser analisadas se foram homicídios e os 47.742 homicídios registrados no Brasil que, dependendo do Estado de origem, há uma grande proporção que necessita ser elucidado. Ao elucidar e construir os dados com o intuito de subsidiar decisões, os dados precisam ser precisos de forma que atenda a complexa dinâmica do crime, assim, necessita conhecer a motivação, o armamento, se foi planejado ou não, se há relação com outros crimes e se está em rede.
Essas informações básicas até que estão nos inquéritos para fundamentar os inquéritos policiais e judiciais, mas não estão organizadas e sistematizadas em plataformas. Pois as políticas de segurança terão mais eficiência se contemplarem ações específicas para redução de mortes provocadas:
a) por facções criminais penais, por guerras, disputas, demonstração de força, entre outras;
b) por conflitos entre pessoas não conhecidas como em trânsito ou bares;
c) por conflitos entre pessoas conhecidas, como feminicídios, vizinhos, parentes;
d) por crimes não organizados, como latrocínio;
e) pelo Estado fruto da política de segurança; e
f) por agentes do Estado ilegalmente. Cada uma dessas motivações apresenta dinâmica própria com soluções que podem até serem próximas, mas com eficácia e eficiência variável. O caminho é longo para consolidar nacionalmente uma cultura de planejamento a partir de informações precisas, mas é o necessário para sair do voo cego para um contexto de racionalidade dos recursos e probabilidade de resultados.
GILVAN GOMES DA SILVA - Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Fonte: forumseguranca.org.br