No auge do fenômeno midiático apelidado "lava jato", quem apontava os erros da operação era acusado de defender a corrupção. Constatado o embuste, chegou a hora de discutir, com assertividade, um modelo eficiente e viável de combate ao crime. No seminário, da segunda-feira (7/3), expoentes do Direito reuniram-se para discutir "O Combate ao Crime além da lavajato", promovido pela TV ConJur.
Por isso, sustentou o apresentador Pierpaolo Bottini, é preciso indicar a existência de propostas adequadas, racionais, e dentro da legalidade para superar o maniqueísmo entre os favoráveis a processos movidos à base de notícias e os que exigem provas para condenações.
Para Bottini, no plano legislativo, a discussão deve superar a ideia de apenas aumentar a pena ou restringir o direito de defesa, uma vez que outros países já demonstraram que esse movimento não tem eficácia no combate ao crime organizado, apenas aumentando o encarceramento em massa.
Existem outros tipos de medidas legislativas possíveis, como organizar de maneira mais adequada a competência jurisdicional, alterar a lei de lavagem de dinheiro e ampliar as hipóteses de obstrução de Justiça. Além disso, é preciso aprimorar a gestão de informações no âmbito do combate ao crime organizado. "Podemos construir o combate da corrupção sem recorrer ao arbítrio e métodos contrários à Constituição", pontuou.
Em seguida, Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, afirmou que o combate à corrupção se tornou um tema central da política. Segundo o ministro, desde a década de 1990 foram feitas várias tentativas de conter a corrupção de forma muito performática, e quase todas resultaram em frustração, por conta de nulidades dos atos. A "lava jato", que adotou métodos heterodoxos, como o repasse de informações clandestinas e tentativas de neutralizar adversários, traduz um modelo autoritário e revelou distorções que se perpetuam no combate à corrupção.
"Não podemos fugir dos parâmetros do estado de Direito, do direito de defesa, do contraditório, e da proibição da provas ilícitas", reforçou. Durante a operação, as delações foram absolutamente impróprias e inadequadas porque obtidas através de prisões alongadas, sob uma forma de "verdadeira tortura", o que precisa ser discutido no Congresso, concluiu.
Walfrido Warde, advogado e autor do livro "O espetáculo da corrupção", disse que em seu livro denunciou um combate irresponsável à corrupção, que produziu três efeitos colaterais: esgarçamento do tecido social, levando a polarização da sociedade; deterioração da política e a destruição do sistema econômico brasileiro. Desde 2018, houve a reversão de diversos abusos da "lava jato", porém as leis utilizadas na operação ainda existem (como a lei da delação premiada e anticorrupção).
Assim, se a operação jato não existe mais, não é possível dizer que o lavajatismo esteja morto. Ainda falta disciplina adequada para alguns aspectos essenciais do combate à corrupção. Em primeiro lugar, ainda há dificuldade para definir o que é corrupção.
Outro aspecto levantado pelo advogado é a questão da detecção da corrupção. "Não seria o caso de regular as delações premiadas? Se não temos certeza sobre as técnicas de detecção de crimes, aparece na sociedade um desejo punitivista", ressaltou Warde.
Outro pilar seriam mecanismos de solução de preservação das empresas. Hoje, as empresas brasileiras envolvidas em episódios de corrupção têm muita dificuldade de resolver sua vida com o Estado por meio de um acordo de delação único.
"Não conseguimos nos livrar de instrumentos do lavajatismo. Superar a 'lava jato' não implica abolir o combate a corrupção. Ao contrário, é preciso despolitizar o combate à corrupção, para criar um modelo estrutural de combate ao crime, em que tenham assento num órgão de regulação o Ministério Público, o Judiciário, a sociedade civil, a polícia e as empresas. É preciso tratar com seriedade, porque a corrupção aprofunda a desigualdade social. É importante perceber que mudou o manejo da lei, mas elas continuam e ainda podem voltar a produzir danos drásticos ao tecido social, à política e economia do Brasil", finalizou o especialista .
O procurador-geral da República, Augusto Aras, disse que o Ministério Público Federal tem grande preocupação de preservar conquistas do processo civilizatório. A corrupção não atinge só a vida privada, mas também agentes públicos; por isso, seria necessário um controle permanente sobre os acordos de leniência e de não persecução penal para que o lado passivo não seja destinatário de medidas abusivas, mas também para que não sejam aceitos acordos sem benefícios para a sociedade.
"Na nossa gestão o que mais tem nos preocupado é dar institucionalidade ao trabalho do MP. Superamos o modelo de força tarefa, sem organização e forma de fiscalização, para os modelos dos Gaecos federais. O Gaeco não tem um dono como tinham as forças tarefas. Buscamos dotar todos os colegas do MPF para que possam ser eficientes, respeitando ao devido processo legal."
Em 2021, a PGR fez 20 denúncias contra 139 pessoas, afirmou o PGR. Somando-se as denúncias de 2020, foram quase 400 pessoas com prerrogativa de foro, e nenhuma dessas investigações teve declaração de nulidade por parte do Judiciário, destacou. "Tudo isso sem o espetáculo da corrupção. A institucionalidade é o caminho para preservar os princípios constitucionais", refletiu o PGR.
Aras falou ainda sobre o cuidado para não transformar juízos penais em juízos universais, como aconteceu na "lava jato", reforçando que o princípio da livre distribuição, do juiz natural e da impessoalidade precisam ser conservados. De acordo com o PGR, tudo isso é de grande importância porque a maioria das nulidades decretadas pelo STF tiveram relação com essa figura do juízo universal. Para ele, em questões penais, nada é mais importante que o juiz natural, que, além de competente, seja também imparcial.
Por fim, Simone Schreiber, desembargadora do TRF-2, pontuou os problemas que identifica no lavajatismo para, então, pensar em modelos alternativos. Primeiro destacou que devem existir órgãos de controle que não passem necessariamente pelo Poder Judiciário. Para ela, o Judiciário deve agir somente se os outros órgãos falharem. Nesse sentido, o modelo da "lava jato" não é eficiente.
Outro problema é a conexão probatória, em que há ações estratégicas do MP para provocar a distribuição dirigida de processos para juízos específicos. Para a magistrada, o CPP tem um conceito muito fluido da conexão probatória. Na "lava jato", essa "super conexão" gerou problemas como a exagerada personificação do juiz responsável pela operação e a proximidade entre o juiz e as partes.
Na questão da colaboração premiada, a desembargadora entende que o STF é muito permissivo com ela. "Ela deve ser utilizada e é um importante meio, e inclusive o STF já está repensando o entendimento de que ninguém pode discutir sobre os acordos. Mas é importante avançar na regulamentação da colaboração premiada", disse.
O ultimo ponto levantado foi quanto à gestão da prova. Segundo Schreiber, a prova fica sempre em poder do MP, e os advogados não têm acesso às gravações e informações bancárias. Dessa forma, há questões gerenciais que acabam causando atraso. Em sua opinião, as denúncias devem ser viáveis, especialmente em processos complexos, para a eficiência não se restringir às medidas cautelares.
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