Na construção diária de uma segurança pública alinhada às diretrizes de respeito aos direitos humanos e em defesa do estado de direito, há uma complexa dinâmica de relações de poderes sociais, culturais, políticos, econômicos e jurídicos. O resultado dessas relações estrutura acessos a bens, a serviços, a direitos e deveres para pessoas e instituições. No Brasil, pela concentração de poderes historicamente construída e socialmente mantida, o resultado extremo pode ser o direito ou não à vida, por exemplo, tanto simbólica quanto real.
O ano de 2022 já deixa marcas nessa dinâmica e há o que consideramos avanços e retrocessos, nessa perspectiva simbólica e real. No dia 13 de março reverberou a triste notícia da morte do policial civil, militante e influencer Paulo Vaz, homem trans de 36 anos. Instituições ligadas à promoção da igualdade da comunidade LGBTQIA+ apresentaram as condolências. A perda real e simbólica é nítida. Além da triste perda para familiares e amigos, há perda também nas relações sociais, culturais e políticas nas construções de recursos jurídicos em relação à comunidade LGBTQIA+, tanto dos operadores da segurança pública quanto da sociedade civil. Além da representatividade na instituição, também era um ponto de referência.
Assim como também estava se tornando Henrique Harisson na PMDF. Criticado por ter beijado o companheiro na cerimônia de formatura de conclusão de curso em 2020, o policial militar deixou as fileiras da instituição militar. A profecia autorrealizadora dita em mensagem de aplicativo cumpriu-se: “Esses aí eu acho que não se criam na Polícia Militar. Nós conhecemos bem como é nosso ambiente e o que deve acontecer durante a trajetória deles. Nós vamos ver que vai existir aquele esfriamento, o isolamento deles dentro da corporação. Eles não se criam”. As interações face a face, neste momento, foram providenciais. Mas também a legislação penal militar que, segundo o próprio policial, o impedia de agir politicamente em prol da causa e agora poderá atuar.
Todavia, como disse anteriormente, entre retrocessos neste espaço de luta, também há avanços. Em fevereiro, Maria Antônia retificou os dados na PMDF e, aos 60 anos, tornou-se a primeira mulher trans oficial superior de uma polícia militar no Brasil. A partir do exemplo do policial militar homossexual que deixou as fileiras profeticamente, é compreensível o motivo que levou a coronel a retificar a documentação apenas quando estava na reserva remunerada. Mas, mesmo na reserva, o simples fato de tornar pública a alteração cadastral já confere à ação dimensões simbólica, pela visibilidade, e política, pelo status de oficial superior. Assim como outras pessoas que direta ou indiretamente construíram historicamente bases para as presentes ações.
Além dessas ações de luta cotidianas e individuais, o processo histórico de lutas coletivas também construiu redes profícuas e propositivas. Um desses resultados é a consolidação da RENOSP, a Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Intersexos (RENOSP-LGBTI), constituída a partir do II Seminário Nacional de Segurança Pública sem Homofobia fomentado pela SENASP -MJ, por intermédio do Grupo de Trabalho de Combate à Homofobia-GTCH, em 2010, realizado conjuntamente com o I Encontro Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTs, também promovido pela SENASP. Apesar de não se tornar um instrumento legítimo do Ministério da Justiça, pela falta da publicação da portaria acordada, foram constituídos representantes estaduais e do Distrito Federal.
As pessoas associadas são oriundas das Polícias (Militares, Civis, Federal e Rodoviária Federal), das Guardas Municipais, do Sistema Penitenciário, dos Corpos de Bombeiro e das Forças Armadas. A diversidade institucional, de cargos e a capilaridade nacional proporcionam potencialmente um espaço de reflexão e de produção de conhecimento a partir da interseção Segurança Pública e comunidade LGTBQIA+ singular. A RENOSP produziu e propôs protocolos e ainda auxilia como identificar situações que podem gerar violências.
O manual de atendimento e abordagem da população LGBTQUIA+ por agentes de segurança pública apresenta e explica resumidamente a diversidade de gênero, de orientações sexuais, os direitos constitucionais e as recomendações institucionais acordadas até então sobre abordagens e revistas pessoais. Como exemplo de orientação, há que homens trans sejam revistados por agentes femininos, prioritariamente, e como deve proceder para evitar constrangimento ao deparar com binder, packer ou outro acessório. Há pontos também sobre pessoas LGBTI no sistema prisional. Já a Cartilha Dicas de Segurança que fomenta a construção de redes de apoio em situação de violência no espaço público e sugere ações para construção de provas dos diversos tipos de violências, entre outras questões.
É nessa dinâmica de lutas individuais e coletivas, avanços e retrocessos simbólicos e reais que está se constituindo um debate ainda seminal na Segurança Pública. Ter a diversidade nas instituições altera as dinâmicas de relações internas e externas: são construídos outros protocolos, outras linguagens, mesmo que não oficiais, nas relações face a face, tanto entre agentes de segurança quanto entre agentes e cidadãos. E o conhecimento da prática policial e da vivência fora da lógica cis-hétero é reflexivo e único. O lugar de fala das pessoas não cis e não-hétero é singular e necessário para construção de outras práticas na segurança pública para possibilitar a garantia dos direitos de todas, todos e todes.
GILVAN GOMES DA SILVA - Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.