O caso Marielle Franco completou quatro anos. As investigações até o momento resultaram em várias prisões e no indiciamento de duas pessoas: um policial militar reformado, o sargento Ronnie Lessa, e Élcio Vieira de Queiroz, que já pertencera à mesma corporação, da qual fora expulso.
Exatamente no dia 14 de março de 2018, a então vereadora da cidade do Rio de Janeiro foi assassinada, juntamente com seu motorista Anderson Gomes. O crime aconteceu no largo do Estácio, zona central da cidade, por volta das 21h15min, quando um veículo Chevrolet Cobalt, de cor prata, emparelhou com o veículo em que estavam as vítimas, um Chevrolet Agile de cor branca, e na sequência foi produzida uma rajada de tiros, que partiu de uma submetralhadora. No veículo ainda estava uma assessora da vereadora, que foi ferida sem gravidade por estilhaços relacionados aos disparos, e liberada após ser atendida em um hospital.
A partir desse momento são desencadeadas diversas perícias: Perícia de Exame de Local de Crime, Perícia Médico-legal nos corpos (Necrópsia); Perícias Balísticas (realizadas inicialmente nos elementos balísticos encontrados na cena – estojos deflagrados – e em projéteis e/ou fragmentos extraídos dos dois corpos), Perícias em imagens; Perícias em arquivos de áudio; Perícia de Reprodução Simulada.
Vamos contextualizar e explicar o alcance e as controvérsias nas quais a perícia do caso esteve envolvida.
A Perícia de Local: foi realizada tão logo acionada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro. Realizou-se no local onde estavam o veículo e os corpos das vítimas. Segundo informações divulgadas na mídia, os peritos teriam recolhido na cena do fato pelo menos nove estojos de cartucho deflagrados, todos de calibre 9 mm. O veículo que foi periciado de forma preliminar no local e posteriormente em outro espaço para onde teria sido preservado, foi atingido por ao menos 13 projéteis de arma de fogo, segundo informações divulgadas, dos quais nove teriam penetrado pela lataria do lado direito, mais a posterior, e outros quatro perfuraram vidros da porta posterior direita. Foram realizados também estudos das trajetórias dos disparos que atingiram o veículo.
As perícias dos corpos das vítimas, realizadas no Instituto Médico-legal, determinaram as causas da mortes, as quais foram produzidas em decorrência dos projéteis de arma de fogo que atingiram os dois corpos. As informações divulgadas informaram que Marielle foi atingida por três projéteis na face direita de sua cabeça e um no pescoço, enquanto Anderson, seu motorista, foi alvejado por pelo menos três projéteis que o atingiram nas costas. O que se consegue apurar das informações divulgadas na mídia é que pelo menos dois fragmentos de projéteis de arma de fogo teriam sido removidos dos corpos, um em cada vítima.
Os estojos deflagrados, coletados no local, e os fragmentos de projéteis recolhidos nos corpos foram encaminhados ao setor de Balística do Instituto de Criminalística. Isso permitiu que a perícia concluísse que a arma usada no crime teria sido uma submetralhadora HK MP5. Essa arma é usada por algumas forças especiais de polícia e pela Polícia Federal. As investigações não apontaram até o momento a origem da arma. Quanto à munição usada no crime, concluiu-se que parte pertencia ao lote UZZ18 e teria sido desviada da Polícia Federal.
O então ministro extraordinário da Segurança Pública, Raul Jungmann, chegou a afirmar que a munição teria sido roubada da sede dos Correios na Paraíba, anos antes. O que se divulgou na mídia é que o lote com quase dois milhões de cartuchos de munição fora amplamente distribuído entre as unidades da corporação e que as unidades de São Paulo e do Distrito Federal receberam a maior quantidade, mais de duzentas mil cápsulas cada uma. Tal lote seria o mesmo de parte dos projéteis utilizados na maior chacina do estado de São Paulo, na qual dezessete pessoas foram assassinadas em Barueri e Osasco, na Grande São Paulo, em 13 de agosto de 2015.
A análise técnica da perícia também revelou que a munição era original, isto é, ela não fora recarregada, já que a espoleta no cartucho era original. Chama a atenção ainda que a legislação sobre a gravação de munições fala em lotes com no máximo 10 mil unidades com uma mesma identificação. O objetivo da gravação dos lotes nos cartuchos de munição é permitir e facilitar sua rastreabilidade. Com 2 milhões de cartuchos com o mesmo número de lote isso se torna praticamente impossível.
Em 2019 a Polícia Federal e a Polícia Civil do RJ envolvem-se em polêmicas quanto a provas coletadas na cena de crime, em especial com críticas da PF quanto a questões que envolveram a cadeia de custódia de alguns dos vestígios coletados. Explicando: segundo a PF, os estojos deflagrados teriam sido coletados em um único invólucro (saco plástico), permitindo o atrito entre esses estojos e dificultando a busca de impressões digitais (apenas um dos estojos teria revelado uma impressão digital parcial). Outra crítica seria o emprego de uma tinta verde usada para marcar os lotes de origem da munição. A Polícia Civil do RJ, por sua vez, enviou ofício requisitando todas as submetralhadoras HK MP5 da Polícia Federal para que fossem comparadas com os estojos recolhidas na cena do crime. A PF teria negado a cessão das armas. Na época, o então ministro Raul Jungmann teria designado um especialista em impressões digitais e DNA para fazer o exame da munição visando confronto com um banco de dados da PF. Até hoje não se sabe se tal exame e se um possível confronto foram efetivamente realizados.
Outra polêmica que envolveu a perícia do caso aconteceu também em 2019, e chegou a respingar até mesmo no Palácio do Planalto. Desta vez as discussões se deram sobre a perícia em arquivos de áudio referentes a sistemas de gravação do condomínio onde morava um dos indiciados, Ronnie Lessa. Um dos focos era responder se a voz que autoriza a entrada do ex-policial militar Élcio Queiroz no condomínio era realmente de Ronnie Lessa. Isso teria sido comprovado na perícia. Na época, o então deputado federal Jair Bolsonaro, que morava no mesmo condomínio, comprovou que no dia mantinha uma agenda em Brasília. Uma testemunha, um dos porteiros, teria relatado aos investigadores da Delegacia de Homicídios (DH) que Jair Bolsonaro teria autorizado a entrada de Élcio no condomínio. A polêmica se instalou e uma verdadeira disputa entre os peritos oficiais da PCRJ e os técnicos do MPRJ acabou por se se estabelecer. Controvérsias envolvendo a questão expuseram ainda mais a falta de integração entre os diferentes atores envolvidos. Durante as investigações, diversas mudanças nas equipes que trabalhavam no caso e na cúpula dos responsáveis pelos inquéritos e processos se materializaram.
Outros exames periciais também se fizeram presentes no caso, tais como exames de imagens obtidos de câmeras de segurança que captaram os veículos envolvidos no dia do crime, e ainda exames de Reprodução Simulada, efetivados ainda no mês de maio de 2018 e que duraram mais de 5 horas. Certamente importantes informações foram agregadas ao processo por essas perícias.
Apesar de algumas polêmicas, a contribuição da perícia no caso é inegável e não deve parar por aí. Importa lembrar que outras pessoas podem ser envolvidas no caso, gerando novos exames, até mesmo graças ao fato de que os indiciados, mesmo se considerados culpados pela morte da vereadora e de seu motorista, podem estar acobertando os verdadeiros interessados na execução de Marielle. Não sei se um dia teremos essa revelação, mas a perícia certamente estará a postos para seguir colaborando.
CÁSSIO THYONE ALMEIDA DE ROSA - Graduado em Geologia pela UNB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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