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A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE POLICIAL NA DEMOCRACIA

É imperativo que a educação policial não se restrinja à formação profissional básica dos policiais, mas também permeie toda a trajetória profissional, envolvendo todos os integrantes de um departamento de polícia de diferentes níveis hierárquicos e de gerações.

17/04/2022 às 16h43
Por: Carlos Nascimento Fonte: forumseguranca.org.br/
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A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE POLICIAL NA DEMOCRACIA

Ao final da segunda década do século XXI, casos de violência policial – particularmente com características de cunho racista – têm gerado protestos de diferentes segmentos da sociedade civil e política em diversos contextos nacionais. Como consequência, propostas de reformas têm gravitado em torno da necessidade de mudanças nos procedimentos e nas práticas, bem como na implementação de indicadores de desempenho para responsabilizar a polícia dos desvios e crimes cometidos, buscando restaurar a confiança no policiamento, principalmente entre as comunidades étnicas minoritárias.

No caso brasileiro, a altíssima frequência da ação letal da polícia contra essa parcela da população no cotidiano das grandes cidades brasileiras sugere que essas mortes não são casos individuais isolados, mas configuram-se como racismo profundamente enraizado na estrutura da sociedade e nas organizações policiais do país.

Em decorrência, uma questão fundamental para análise diz respeito às ferramentas possíveis que podem servir para promover e sedimentar modos de policiamento legítimos para a produção da manutenção da ordem e da prevenção do crime democraticamente viáveis.

Com base em trabalhos que discutem a questão da legitimidade da autoridade policial no escopo da teoria da justiça procedimental, a legitimidade policial compreende tanto aspectos instrumentais quanto normativos: os primeiros têm a ver com avaliações instrumentais de três elementos – o risco, o desempenho e os julgamentos sobre a distribuição da justiça. A visão instrumental sugere que a polícia pode aumentar o apoio do público quando: (1) produz um risco presumível de que as pessoas que infringem a lei podem ser apreendidas e sancionadas (dissuasão); (2) controla efetivamente o crime e o comportamento criminoso (desempenho) e (3) distribui de forma justa os serviços policiais entre as pessoas e as comunidades (justiça distributiva) (SUNSHINE; TYLER, 2003; HINDS; MURPHY, 2007).

Nessa direção, é preciso salientar que as estruturas internas das organizações policiais têm um papel importante, porque condicionam a capacidade e, de fato, a vontade dos policiais de fornecer um estilo de policiamento comprometido com os procedimentos que compõem a justiça procedimental, e uma vez que estejam estruturados em linhas democráticas estarão em melhor posição para fazê-lo. Processos democráticos dentro de organizações policiais também podem ter o efeito de “ensinar” policiais – encorajando-os a internalizar valores democráticos (BRADFORD; QUINTON, 2014, grifo dos autores).

O trabalho de Bradford e Quinton (2014) sugere que as percepções dos policiais sobre “justiça organizacional” em seus relacionamentos com gerentes e líderes, particularmente no que concerne aos procedimentos organizacionais – e como são aplicados pela alta administração –, bem como a qualidade de interação e comunicação estão relacionadas com o compromisso com regulamentos, objetivos organizacionais e “comportamentos de cidadania organizacional”, que podem aumentar suas vontades de se envolverem com os membros do público de forma positiva e construtiva.

Esses autores argumentam que a justiça organizacional proporciona um senso de valor e integração entre policiais, gera orgulho e identificação com a organização, aumenta a legitimidade de estruturas e processos internos e encoraja orientações positivas para o policiamento orientado para serviços. Organizações injustas, ao contrário, dificilmente encorajam tais atitudes entre seus funcionários, e as percepções de injustiça internamente podem levar ao desenvolvimento de um conjunto diferente de adaptações culturais tipicamente associadas na literatura sobre policiamento como subculturas ocupacionais.

Nessa perspectiva, assume-se aqui que a maneira como são processadas as etapas de socialização profissional no contexto institucional, incluindo a formação profissional, pode fornecer algumas indicações importantes para a apreensão das representações, bem como dos meios utilizados para moldar a identidade profissional dos futuros policiais, como também suas atitudes e seus comportamentos no campo de trabalho (PONCIONI, 2021).

Desse modo, é importante destacar que qualquer curso de formação profissional de policiais que pretenda “moldar” um estilo de policiamento comprometido com os procedimentos legítimos aos olhos do cidadão deve comprometer-se também com “comportamentos de cidadania organizacional”, com a utilização de uma abordagem teórico-metodológica que favoreça o diálogo, a interdisciplinaridade, o enfoque de  temáticas  como  relações  interpessoais  e a diversidade cultural, em conjunto com assuntos associados aos conhecimentos tradicionalmente transmitidos para a realização do trabalho policial; um corpo docente qualificado e a cooperação com universidades são essenciais para o êxito de qualquer intervenção neste campo. É imperativo, ainda, que a educação policial não se restrinja apenas à formação profissional básica dos policiais, mas também permeie toda a trajetória profissional do policial, envolvendo todos os integrantes de um departamento de polícia de diferentes níveis hierárquicos e de gerações.

Assim, o processo educativo se traduz no estímulo à reflexão, criatividade, empatia, flexibilidade e iniciativa com vistas a possibilitar a análise inteligente no uso da discricionariedade, com decisões justas para a resolução de problemas locais e/ou para encaminhá-los ao próprio público e aos setores competentes – agências públicas e/ou privadas.  O treinamento é uma complementação do ensino essencial, tendo como finalidade fundamentalmente a exposição e a explicação de técnicas que, praticadas várias vezes, se tornam um reflexo, com vistas à execução de uma tarefa ou para responder a uma determinada situação.

Entretanto, o enfrentamento do racismo institucional exige mais do que formação e aprimoramento profissional, demanda igualmente a responsabilização por má conduta – discriminação, violência e letalidade policial –, superando a perspectiva centrada  apenas  no  indivíduo,  tornando-se  objeto  de  preocupação  e  mobilização  de  esforços  da  instituição  policial  para orientar e encorajar mudanças na estrutura e na organização do trabalho  policial. Além disso, é necessário que a eliminação do preconceito e da desvantagem racista e a demonstração de justiça em todos os aspectos do policiamento se constituam problemas para a agenda política a serem enfrentados por toda a sociedade por intermédio de políticas públicas.

PAULA FERREIRA PONCIONI  - Doutora em Sociologia pela USP , Pós-doutorado no Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da UnB e pós-doutorado no Kings Brazil Institute, Kings College, Londres. Professora aposentada da UFRJ. Conselheira do FBSP. Atualmente é Editora-chefe da Revista Brasileira de Segurança Pública.

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