Entre as hipóteses mais plausíveis para a queda dos homicídios e demais crimes violentos desde 2017 há uma conjectura segundo a qual a migração dos crimes violentos para os crimes digitais se deveria a mudanças de tecnologia, que por sua vez estariam induzindo a mudanças na atividade de rotina. Entre estas mudanças tecnológicas estão a proliferação de celulares e o acesso praticamente universal à internet. Estas novas rotinas produziram recentemente mudanças bruscas no estilo de vida, diminuindo a motivação dos agressores e as oportunidades de contato entre agressores e vítimas.
A teoria do crime como atividade de rotina diz que para que um crime ocorra é preciso que ofensor e vítima se encontrem num determinado espaço (pouco protegido) e tempo. Pelo menos esse é o caso para os crimes de contato. O avanço das novas tecnologias impõe uma revisão da teoria, uma vez que o encontro físico entre agressor e vítima tornou-se secundário. A hipótese é que a proliferação de celulares, especialmente entre os jovens, é tão intensa e seu uso tão intensivo, que esses encontros entre ofensores e vítimas estão deixando de ocorrer com tanta frequência como antes (por outro lado, é uma boa explicação para o crescimento do roubo e furto de celulares). Menos interação social implica menos conflitos e, por conseguinte, menos homicídios. O fenômeno é mundial e aparentemente também se observa em algumas partes do Brasil, de uns anos para cá.
Em artigo de 2019[1] comentei esse intenso crescimento, identificado pelo IBGE, e a hipótese da migração: “De acordo com os dados da pesquisa TIC do IBGE de 2018, em 2008 apenas 34% da população brasileira tinha acesso à internet. Dez anos depois, esse número dobrou. Em 2018, 69,8% da população tem acesso à internet. Nas classes A e B essa porcentagem supera os 90%. Isso representa 127 milhões de pessoas ou 46,5 milhões de domicílios com acesso a internet.
Não só o acesso à internet cresceu como também o tempo que as pessoas passam conectadas na rede, especialmente os jovens. Segundo a pesquisa We are social de 2019, o brasileiro passa em média 9 horas e vinte minutos conectado à internet, por dia.
O elevado nível de acesso e o tempo gasto na internet explicam por que o Brasil está nos primeiros lugares do ranking de crimes cibernéticos do mundo (soma 2,8% da população mundial, mas cerca de 5% da origem dos ataques cibernéticos no mundo) e ajuda a entender também a predileção dos criminosos, em geral jovens, pelos smartphones. A hipótese é de que esse aumento dos celulares, do acesso à internet e de tempo gasto na internet, deslocou parte dos criminosos para os crimes digitais”.
Os dados de explosão dos estelionatos no país reforçam a ideia de que é possível que estejamos passando de uma transição dos crimes de contato – que são potencialmente mais violentos – para os crimes digitais. Se a hipótese for correta, deveríamos observar uma diminuição da criminalidade violenta nas regiões onde o acesso à internet foi mais intenso e precoce. Embora os crimes digitais não tenham fronteira geográfica, é uma possível explicação para o fato dos homicídios e outros crimes terem começado a cair antes no Sudeste e apenas tardiamente no Nordeste e Norte.
Para uma minoria de ofensores conectados e mal intencionados, abriu-se um novo e imenso mercado de oportunidades criminais. Há uma discussão sobre se tratam-se de antigos criminosos que passaram a adotar um novo modus operandi ou de uma nova geração de criminosos, mas não temos informação suficiente para esclarecer o ponto.
No Rio de Janeiro os estelionatos aumentaram 103% entre 2018 e 2021, no Rio Grande do Sul 274%, no Espírito Santo 230%, no DF 186% e em Santa Catarina, nada menos que 288% no mesmo período. O crescimento médio nos cinco estados foi de 201% no período, quando os estelionatos passam de 100 para 300 mil casos anuais. Dados dos dois primeiros meses de 2022 sugerem que a média mensal de casos continua crescendo. Infelizmente apenas alguns Estados disponibilizam os dados de estelionatos ou de crimes digitais, mas é bastante provável que o fenômeno seja nacional. Note que a epidemia apenas exponenciou um fenômeno pré-existente, levando mais gente a ficar em casa, acessando a internet através de computadores mais desprotegidos do que nas empresas ou escolas.
Os crimes digitais podem englobar também os furtos e roubos, mas os mais comuns são as diversas modalidades de estelionatos, onde o crescimento é mais visível. Para tentar conter o avanço do fenômeno, o legislativo fez o de sempre, ou seja, procurou aumentar a pena para o estelionato. O Congresso apresentou vários projetos como o 2068/20, PL 4554/20 e o Projeto de Lei nº 2905/2021, para aumentar as penas para o crime de estelionato, com agravamento de pena “se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo.” Finalmente, uma nova lei sobre o assunto (14.155) entrou em vigor em maio de 2021. É preciso uma análise rigorosa dos efeitos dessas propostas, mas, a julgar pelo histórico dos “aumentos de pena” no país, a proposição não intimidou muito os estelionatários…
É preciso também aprofundar o estudo do fenômeno e pensar em medidas preventivas – alertas para a população, uso de tecnologia, melhoria na investigação e monitoramento do problema, etc. – que vão além do aumento das penas. Uma das dificuldades na prevenção ao estelionato é que existem dezenas de tipos diferentes de golpes. Assim, por exemplo, segundo o Observatório de Segurança Pública do Mato Grosso, os golpes mais comuns em 2021 foram a clonagem do Whatsapp (27%), golpes por sites de comércio eletrônico e redes sociais (21%); transação financeira sem autorização do titular, como o saque do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), auxílio emergencial ou empréstimo (12%); boleto e código de barra falso (4%); cartão clonado (4%); SMS ou Link falso que quando acessado furta os dados da vítima (2%); outros golpes (cheque clonado, depósito com envelope vazio, documento falso), com 2%; e golpe do motoboy (1%). Entre os golpes mais comuns, segundo a FEBRABAN, estão o da “falsa reputação”, a pirâmide financeira, o golpe do falso funcionário do banco, falso motoboy, falso leilão, o “pisching”, golpe do extravio do cartão, do delivery, entre diversos outros.
Desnecessário dizer que o prejuízo potencial para as vítimas destes golpes supera em muito os valores que podem ser perdidos com o roubo de uma carteira ou mesmo de um carro ou residência. Para o criminoso, a punição é menor e bem menos arriscada do que para roubo. Tampouco são necessários intermediários para transformar o fruto do crime em dinheiro. Com o processo de securitização, veículos e residências são cada vez mais difíceis de roubar. Em resumo, não é preciso ser um grande calculador racional para entender a troca dos roubos pelo estelionato.
O aspecto positivo, se é que existe, é que se realmente temos uma migração, então os crimes violentos de contato podem entrar numa tendência duradoura de queda. Ainda é cedo para adiantar e talvez estejamos apenas diante de um ciclo de queda, mas é possível que em alguns anos o Brasil passe por algo parecido com o que vem ocorrendo nos países desenvolvidos, onde a criminalidade tem caído sistematicamente nos últimos 20 anos: homicídios, arrombamentos, roubos de veículos diminuíram intensamente na Europa Ocidental, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão e diversos outros em todo o mundo.
As novas tecnologias abriram novos mercados para uma prática milenar enquanto fecharam outros, reforçando a proteção de veículos e residências. Criminosos, como todos nós, se adaptam aos novos tempos.
(*) TÚLIO KAHN - Consultor sênior na Fundação Espaço Democrático e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.