Difícil saber quando tudo começou. Parece consenso a percepção de que as carreiras policiais e militares constituem uma grande base de apoio ao atual governo. Naturalmente, essa não é uma base de apoio amparada por uma simpatia gratuita, mas talvez pela esperança de um Estado ou, quem sabe, uma sociedade que enxergue os policiais como eles mesmos se enxergam: defensores do Estado e da democracia, capazes de doar suas vidas em defesa de terceiros desconhecidos, mas que também esperam reconhecimento e valorização que lhes possibilitem exercer seu trabalho de forma eficiente, eficaz e, principalmente, conceder a suas próprias famílias um pouco de conforto e segurança.
Provavelmente se engana aquele que acredita que o reconhecimento salarial seja o único desejo dos policiais, ainda que este seja um dos principais temas midiáticos da atualidade.
Vejamos o Brasil como o país democrático que é: dividido em três poderes independentes e harmônicos entre si, igualmente importantes e necessários, mas capazes de adotar decisões técnicas, políticas e jurídicas muitas vezes antagônicas.
Os atuais pleitos pela tão sonhada reestruturação das carreiras policiais da União ganharam força depois do esforço presidencial junto ao Congresso Nacional com foco na aprovação, em 21 de dezembro do ano passado, do PLOA (Projeto de Lei Orçamentária Anual) que previa orçamento de R$ 1,7 bilhão para reestruturação salarial dos agentes de segurança federais a partir do ano de 2022. Naturalmente, outras carreiras federais sentiram-se desprestigiadas e iniciaram movimentos paredistas e movimentos políticos, igualmente em busca de reposição e aumento salarial.
Este é o momento em que os poderes Executivo e Legislativo precisam interagir e chegar a um consenso. É natural que as carreiras policiais busquem no chefe do Executivo a força e a esperança de que precisam para alcançar sua reestruturação; neste ponto, as bancadas parlamentares de apoio à segurança pública também entram em ação. Vale lembrar que este cenário agrega a pressão de um ano eleitoral que promete disputas intensas.
Retornemos aos três poderes da República. O Poder Executivo é o grande chefe das Polícias da União, tem responsabilidades orçamentárias, técnicas, políticas e jurídicas limitando seus atos. A reestruturação dessas carreiras deve ser, por exemplo, tecnicamente aprovada e defendida pelo Ministério da Economia e este não se comove com a desvalorização que tais carreiras sofreram no decorrer dos anos, mas preocupa-se com o futuro impacto orçamentário de suas decisões.
A PRF, por exemplo, no período 2010/2021 acumula uma perda salarial de aproximadamente 40%, segundo dados da FENAPRF.
Aliás, comover-se com os pleitos e com a desvalorização histórica das carreiras policiais não é papel dos técnicos orçamentários, mas sim do Congresso Nacional; afinal, deles emana o poder de definir políticas públicas, corrigir distorções e apontar prioridades, cabendo ao Poder Executivo executá-las.
Noutra esfera, competiria ao Poder Judiciário conceder aos agentes de segurança pública a segurança jurídica necessária à sua atuação. Senão vejamos, recentemente fervilhou em grupos policiais a notícia de que o Judiciário tem se posicionado pela ilegalidade da prisão de indivíduos flagrados com armas e drogas, caso o policial não consiga justificar de forma objetiva a fundada suspeita que desencadeou a busca pessoal e consequente identificação de objetos ou substâncias ilícitas, a exemplo do tratado no RHC 158.580. Essa decisão, basicamente, põe em xeque a pró-atividade e o trabalho rotineiro das polícias ostensivas e abre margem para a responsabilização penal daqueles que assim agirem.
Mas o que essa história tem a ver com a reestruturação e valorização das carreiras policiais? Infelizmente, tem tudo a ver…Como um Estado Democrático que trata as ações de seus policiais sob a lente da desconfiança pretende valorizar essas categorias? A posição de desconfiança do Poder Judiciário seria um reflexo da desconfiança da sociedade? E como um governo pode valorizar tais categorias, se essas desconfianças são estruturantes da nossa sociedade desde o fim da ditadura?
É evidente que esta não é e nem pode ser a luta de um único homem ou de uma única categoria profissional. A valorização das carreiras policiais depende do reconhecimento delas como estruturantes e essenciais ao Estado Democrático. Reconhecimento que ocorreu com a finalidade de proibir-lhes o direito à greve, mas não ocorre com a finalidade de valorizá-las ou dar-lhes as proteções e garantias necessárias ao desempenho de seu papel e à proteção de suas famílias.
Enfim, retornando ao início desta conversa, a reestruturação salarial das carreiras policiais é, sim, muito necessária, mas é apenas um dos aspectos de valorização almejado por estes profissionais, que anseiam ainda por segurança jurídica e legislativa na execução de suas atividades.
WALDO JOSÉ CARAM ROHLFS - Policial Rodoviário Federal. Especialista em Segurança Pública e Cidadania (UnB).
fontesegura.forumseguranca.org.br/