A violência doméstica e familiar contra as mulheres é um tema exaustivamente trabalhado nos distintos setores da sociedade e, por isso, de indiscutível visibilidade. Apesar disso, o caminho até a efetivação de uma denúncia não parece oferecer clareza compatível com a relevância do fenômeno.
Em razão da minha experiência de alguns anos como policial militar atuante na ponta da linha, especialmente no enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres, estudos e envolvimento em projetos afins, concluí que a denúncia, apesar de ser fundamental, não deve ser realizada a qualquer custo e de qualquer forma, sob pena de não surtir o efeito desejado. Isso porque, além da possibilidade de a mulher não estar psicologicamente preparada para sustentar a decisão de romper o ciclo violento, o suporte externo necessário nem sempre está ao seu alcance.
Importante enfatizar que, para as situações de flagrância, ou seja, quando o fato está acontecendo, a denúncia deve ser feita imediatamente para evitar que o pior aconteça. O acionamento pode ser feito por qualquer pessoa via 190 – emergência policial, comunicando o fato e o local da ocorrência.
Para os casos reincidentes, que não se tratam de flagrante delito, elenquei seis etapas – a última, sobre a efetivação da denúncia – que julgo essenciais para clarear as ideias das mulheres que não têm noção de por onde começar para romper o ciclo violento ou mesmo para aquelas que, na tentativa, desistem, por desacreditar na possibilidade de mudança da realidade. Para além disso, servirão para nortear pessoas que estão preocupadas com conhecidas que têm sofrido violência e ainda não se deram conta do quanto encontram-se imersas no ciclo violento.
A ideia é jogar luz sobre o problema e indicar possíveis formas de se livrar dele, montando uma estratégia individual que nomeei de “Plano de Denúncia”, direcionado às mulheres em situação de violência perpetrada por parceiros íntimos, os autores mais comuns.
Assim, as etapas envolvem:
1) Fortalecimento de si mesma;
2) Identificação dos aliados;
3) Principais desafios;
4) Elementos facilitadores;
5) Elementos-base para o recomeço;
e 6) A denúncia; o que passo a descrever, pontualmente, na sequência.
Etapa 1 – Fortalecimento de si mesma – Envolve o autoquestionamento provocado ou espontâneo sobre a situação vivenciada. Ao perceber o que ocorre, a mulher pode demorar semanas ou meses para se sentir segura em avançar para os próximos passos. Vale lembrar que um dos aspectos mais importantes nesse processo é o fortalecimento emocional, o “empoderar-se”, no sentido da sustentação da decisão de ruptura de certa relação abusiva. Enfraquecida, a mulher dificilmente levará à frente um plano.
Para tanto, canais públicos para informação, como o Disque 180, podem ser muito úteis. Por outro lado, sobre o autocuidado com a saúde mental, no caso de mulheres que não têm condições de custear sessões terapêuticas com profissionais da psicologia e/ou não estão inseridas em grupos de apoio ou similares, são utilizadas com êxito, para consultas e orientações, as contas nas redes sociais, tanto de profissionais da área, quanto de coletivos de mulheres – encontradas nas plataformas Youtube, Instagram e Facebook, por exemplo;
Etapa 2 – Identificação dos aliados – Relaciona-se desde a identificação dos membros da rede de apoio primária – família e amigos –, até a representação dos órgãos que compõem a rede de enfrentamento à violência contra as mulheres do entorno da demandante. Inclui-se, por exemplo: técnicos (as) e/ou auxiliares do Centro de Referência de Assistência Social; os (as) agentes comunitários (as) de saúde; os (as) líderes religiosos; e as referências comunitárias. Importante que a situação seja partilhada com alguém de confiança da mulher, mesmo que isso fique, inicialmente, em sigilo;
Etapa 3 – Principais desafios – A situação envolve um perfil de autor agressivo? Há risco em potencial de lesão corporal e/ou morte? A ofendida depende financeiramente do agressor? Têm filhos em comum ou de outro relacionamento que sejam crianças e/ou adolescentes? Falta apoio familiar e/ou institucional? Sente culpa em razão da situação vivenciada? Sente-se permanentemente ameaçada e com medo? Sente compaixão pelo agressor? Sente que poderia oferecer-lhe mais uma chance?;
Etapa 4 – Elementos facilitadores – A independência financeira, embora não seja um fator determinante, é um importante facilitador. A decisão espontânea de que a saída da situação violenta precisa acontecer geralmente deve-se ao acolhimento e aos apoios das redes sociais, que envolvem o núcleo familiar, amigos, grupos/coletivos de mulheres, comunidade e membros das organizações governamentais e não governamentais. Se algum desses apoios forem reais, devem ser fortemente explorados.
Etapa 5 – Elementos-base para o recomeço – Esta é a etapa que se firma com referência nas demais, a mais particular delas. Relaciona-se sob três estruturas: Econômica – qual é a particularidade da situação? Apoio moral – familiares e amigos dão suporte? Autoconfiança – acredita em si o suficiente para caminhar sozinha?
O cruzamento das cinco primeiras etapas sugere um mapa da situação, que permitirá a elaboração de um plano individual de denúncia, traçado minimamente para oferecer à mulher melhor clareza no sentido do rompimento do ciclo que, simbolicamente, a aprisiona em uma dinâmica de sofrimento que se estende aos demais membros da família. Por fim, após o plano traçado, sem êxito no rompimento do ciclo violento de forma não conflituosa, o recurso útil e necessário é a denúncia.
Etapa 6 – A denúncia –Nessa fase, a mulher deve registrar o boletim de ocorrência policial em uma base da Polícia Militar ou Polícia Civil, relatando, se possível, cronologicamente, as situações vivenciadas anteriormente – violências psicológicas, morais, sexuais, patrimoniais e/ou físicas, além de enfatizar a última situação violenta sofrida por ela. Em Minas Gerais é possível o registro via delegacia virtual.
Após esta formalização, a mulher deve procurar uma Delegacia de Polícia Civil ou uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher – a DEAM, para representar contra o autor, ou seja, denunciá-lo, processando-o, além de poder requerer Medidas Protetivas de Urgência – MPU. É possível formalizar o requerimento da (s) MPU sem efetivar a representação contra o autor, dúvida de muitas mulheres. Esse pedido pode ser feito tanto na PC, quanto na Defensoria Pública e/ou junto ao Ministério Público. A medida mais comum deferida é o afastamento do autor do lar/das proximidades da ofendida e a proibição do contato com ela por qualquer outro meio – a exemplo das mensagens telefônicas.
JULIANA LEMES DA CRUZ - Doutoranda em Política Social pela UFF; Assistente Social de formação e Mestra em Saúde, Sociedade e Ambiente pela UFVJM; Membro do GEPAF/UFVJM; Coordenadora do Projeto Mulher Livre de Violência; Colaboradora do INBRADIM; Colunista do Jornal Diário Tribuna; Professora de Ensino Superior; Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, lotada em Teófilo Otoni; e associada ao FBSP.
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