Em abril repercutiu a notícia sobre a alta taxa de suicídio entre policiais militares do Estado de São Paulo. Todavia, não é um fato novo e exclusivo da PMESP. Se no ano de 2021 houve uma média de um registro a cada 11 dias, no período de 2014 a 2020 mais de 4.729 policiais foram afastados por problemas psicológicos. A PMAL teve um aumento de 35% de casos em seis anos. A taxa em 2018 na PMAL foi de 57 por 100.000; em Alagoas a taxa geral é de 4,5 e a taxa nacional no ano foi de 5,8.
Em São Paulo há programas implementados desde 2001. As outras polícias militares também desenvolvem ações de intervenções com palestras, distribuição de cartilhas, capacitação de profissionais para identificar possíveis comportamentos de pessoas com ideação suicida e apresentar o acolhimento pelos Centros de Assistências Sociais e pelas Capelanias. Entre as informações apresentadas nas cartilhas há a identificação dos aspectos sociais como poucos vínculos sociais, eventos estressantes (situação de violência, conflitos pessoais, perdas) e aspectos psicológicos (desesperança) como fatores que influenciam o adoecimento e fomentam a ideação suicida. Também há sugestão de ações aos familiares, aos colegas de trabalho e aos comandantes.
Todavia, o que os programas das instituições não problematizam é a relação Trabalho Policial Militar como um fator intrínseco ao suicídio. Tal afirmação só é possível ao relacionar a formação, a atividade laboral, o resultado do trabalho com os fatores de risco e as medidas interventivas para a diminuição da taxa de suicídio nas polícias militares.
A formação policial militar inicia-se com a semana zero. Um rito que tem como objetivo iniciar a desconstrução da identidade civil para a construção da identidade policial e militar. Assim as relações de lazer, religiosas, de estudo, entre outras que eram comuns, serão realizadas preferencialmente entre os próprios policiais. Perde-se a intensidade dos vínculos construídos anteriormente e aumenta a possibilidade de solidão, dois fatores de risco que influenciam a ideação suicida. As características institucionais totais das polícias militares tornam-nos uma não-comunidade e, quanto maior a identificação com o trabalho, maior o afastamento, a morte do “paisano” em troca da construção do possível herói.
Há o ditado policial que diz que cada ocorrência é uma ocorrência e que onde se aprende mesmo é no serviço de rua. A separação entre formação formal e informal como instrumento de orientação da ação policial também constrói insegurança pela falta de protocolos e pelas consequências das ações. Essa insegurança também é presente pela falta de regulamentação do que é necessário como Equipamentos de Proteção Individual e Coletivo, já que cada instituição adota de forma diferente.
Aliás, o medo é a tecnologia de socialização no curso de formação e nas atividades diárias para manter a atenção durante todo o dia, mesmo durante a folga. A construção do medo está nas histórias de ocorrências perigosas como aprendizado informal e nas homenagens aos policiais que tombaram em serviço. Desta forma, mesmo que não presencie as ocorrências de risco, a sensação de risco à vida estará como possibilidade iminente e constante. Além deste fator de manutenção do estresse, o trabalho policial mantém o convívio com sofrimentos das pessoas atendidas. Notícias de homicídios, estupro, assaltos, lesão corporal, abandonos, entre várias outras ações tipificadas como crime são noticiadas como produto de trabalho. São situações de violências a que policiais militares são submetidos.
Esse conjunto de exposições das situações que geram emoções alinhadas ao fomento de ideação suicida são potencializadas pelas políticas de segurança pública de combate. Estimular o combate é catalisar todas as situações que estão relacionadas ao fomento de ideação suicida. O combate tem em suas entrelinhas a figura do herói que vence as batalhas e salva a sociedade. Entretanto, na segurança pública há dois desdobramentos: alinhado com o fator isolamento, há o fator sensação de falta de reconhecimento pelo trabalho por diversos fatores. A construção da imagem do herói também impede o sofrimento público, pois o herói e guerreiro deve sofrer em silêncio e suporta todas as adversidades, inclusive sofrimentos físicos mentais.
Todavia, as intervenções institucionais não tentam diminuir o isolamento policial militar a partir do processo de construção das identidades do trabalho (policial e militar); não diminuem a insegurança das ações policiais pela falta de alinhamento da formação profissional com as ações cotidianas e pela não regulamentação de procedimentos como POP; não há protocolos de acolhimento preventivo para policiais que participaram de ocorrências violentas; assim como não há acompanhamentos periódicos padronizados entre as polícias militares com programas de manutenção da saúde física; e não há espaço na gestão, seja na própria instituição quanto no governo que problematize a política de segurança pública de combate, que permita apresentação de alternativas de ações que envolvam outros segmentos de conhecimento e atuação de outros profissionais.
Desta forma, as ações até aqui apresentadas são importantes como um dado de reconhecimento institucional do suicídio policial como objeto de intervenção. Mas são voltadas somente para questões individuais e necessitam de várias medidas alinhadas entre a instituição policial militar e os governos, pois a construção da política de segurança reverbera na saúde dos profissionais e na qualidade de atendimento da sociedade.
GILVAN GOMES DA SILVA - Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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