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MERGULHANDO NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO SOBRE A SEGURANÇA PÚBLICA

Se a visão do objeto é diferente em cada perspectiva, por certo será mais rica e esclarecedora a convergência dos múltiplos olhares dos pesquisadores mesclados entre as universidades e os órgãos da segurança pública.

24/05/2022 às 22h51
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br/
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MERGULHANDO NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO SOBRE A SEGURANÇA PÚBLICA

A despeito do incontestável avanço das pesquisas em segurança pública e da crescente produção de conhecimento no campo, no Brasil persistem tensões recíprocas entre universidades e organizações policiais, particularmente quanto à validação do saber produzido, de um lado e de outro.

Em geral, o volume de pesquisas da área é realizado por dedicadas professoras e professores das universidades brasileiras. Trata-se de valiosa contribuição teórica que, nas últimas décadas, principalmente, aclarou importantes questões da segurança pública e ajudou a formar inúmeros operadores enquanto massa crítica qualificada, mas que, na perspectiva de alguns desses mesmos profissionais, vez por outra não alcança as “águas profundas” da realidade prática.

É inegável que na produção de pesquisas sobre a polícia, discentes e orientadores precisam lidar com o dilema de transitar no limiar entre as revelações de pesquisas, os códigos internos e as sanções corporativas formais e informais. Howard Becker notou que os policiais se empenham para esconder o que fazem do conhecimento público. Daí, torna-se imperativo conceber métodos apropriados para o segredo confrontado. Becker bem incentivou pesquisadores a formular novos métodos de maneira que se adequem a seus problemas e aos ambientes estudados.

E se o lugar de pesquisador está mais próximo dos métodos do que do conteúdo propriamente dito, por outro lado, o exercício da atividade policial guarda segredos em regra inacessíveis aos outros.

Em contrapartida, diversas foram as teses e dissertações elaboradas por policiais, peregrinos em programas de pós-graduação stricto sensu de universidades de todas as regiões do país, sob a competente orientação de docentes de diversas áreas do saber, alguns até sem domínio do tema específico, porém com suficiente conhecimento teórico e metodológico e experiência acadêmica para orientar o policial pesquisador na construção correta do projeto, na modelagem do objeto, no exercício do estranhamento, no ajuste do método, na escolha das técnicas e instrumentos de pesquisa e no exame do estado da arte. Policiais pesquisadores que almejam contribuir com a produção de conhecimento em segurança pública, candidatos a escafandristas.

Mas tal alegada capacidade dos pesquisadores policiais de conseguirem mergulhar às profundezas das suas organizações é garantia de que se trará luz a questões do fazer polícia ainda pouco evidentes e mal exploradas?

Decerto que não. Há sempre o risco da intelectualidade orgânica, do corporativo, do ideológico. Entretanto, cabe notar que fazer ciência livre de valores para produzir conhecimento puro, neutro, isento dos preconceitos, condicionamentos históricos e interesses pessoais é mito, que se lança como o grande desafio para todo e qualquer pesquisador e pesquisadora, que traja uniforme ou não.

Enfim, deixando de lado as arestas, o fato é que o êxito das pesquisas realizadas interna corporis em segurança pública possui como condição sine qua non a contribuição de pesquisadores acadêmicos, no mínimo, por duas razões óbvias e conexas. Primeiro, porque apesar do saber prático acumulado das ruas, as polícias ainda engatinham no fazer ciência. Em segundo, o quadro de pesquisadores em segurança pública nativos por ora é escasso.

Nessa direção, uma experiência atual e promissora de aproximação entre órgãos de segurança pública e a universidade merece destaque. Envolve o inovador Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás (UFG) — em parceria com o Ministério da Justiça e a Secretaria de Estado de Segurança Pública de Goiás (SSP) — que recentemente ofertou uma turma especial de doutorado para 20 profissionais de segurança pública do Estado, por meio de Edital de Seleção Discente nº 021/2020.

O curso de doutoramento é fruto de uma longa trajetória, iniciando no ano de 1999, com o curso de extensão de Direitos Humanos na UFG envolvendo a sociedade civil, a polícia militar e a polícia civil, contando com apoio do Ministério da Justiça e da Unesco. Em 2000, a partir da experiência na extensão, foi realizada a primeira especialização lato sensu em Direitos Humanos na sede da Academia de Polícia Militar de Goiás (APM/PMGO), via parceria com a UFG, também com corpo discente misto entre policiais e sociedade civil.

Ao longo dos anos de parcerias interinstitucionais, vários foram os esforços para viabilizar o curso de stricto sensu em Direitos Humanos para policiais, pensando-os como sujeitos de direitos e protagonistas da própria história. O caminho para a primeira turma de doutorado ofertado aos operadores da segurança pública foi respaldado a partir de uma política nacional de valorização profissional com aporte do Fundo Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e a fundamental colaboração de diversos policiais e professores.

O projeto contemplou a participação, no processo seletivo, de profissionais da secretaria de segurança pública, bombeiros, peritos, policiais civis, policiais militares e policiais penais. A interlocução institucional entre APM, SSP e UFG, para concretização do curso, foi realizada via termo de cooperação, tendo como representantes a capitã policial militar e pesquisadora Tatiane Ferreira Vilarinho, pela SSP, e o professor e sociólogo Ricardo Barbosa de Lima, pela UFG. O doutorado foi desenvolvido em cooperação entre as partes, desde a elaboração do processo seletivo, do projeto de curso, da seleção mista de docentes para orientação e coorientação e da realização de eventos científicos em conjunto.

A parceria exitosa de ensino entre a Universidade de Goiás e as instituições de ensino profissional da Segurança Pública de Goiás perfaz mais de duas décadas, em atividades conjuntas e diálogos. Uma sinergia que rompeu o ciclo de isolamento das instituições e gerou um salto de qualidade na formação dos futuros pesquisadores em segurança pública.

O Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos (PPGIDH), da UFG, vem ampliando o conhecimento científico e a formação de novos pesquisadores em segurança pública, contribuindo também para fomentar o aprimoramento científico no âmbito das organizações da segurança pública.

A produção e socialização do conhecimento científico do PPGIDH já colhe seus frutos. No início de fevereiro, deste ano, Leonardo Bernardes Melo Cavalcanti – oficial da PMGO que ingressou no programa pouco antes da criação da turma especial – defendeu com sucesso sua tese investigando a atuação policial em Goiás, na metáfora da guerra contra a criminalidade, e se consagrou o primeiro doutor em Direitos Humanos da UFG.

Afinal, se a visão do objeto é diferente em cada perspectiva, por certo que mais rica e esclarecedora será a convergência dos múltiplos olhares, multidisciplinares, em profundez, dos pesquisadores mesclados entre as universidades e os órgãos da segurança pública.

SANDOVAL BITTENCOURT DE OLIVEIRA NETO - Coronel da reserva (PMPA), doutor em Sociologia (UnB), membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

WILQUERSON FELIZARDO SANDES - Coronel da reserva (PMMT), doutor em Educação (UNICAMP).

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