Por: Elisandro Lotin de Souza e Anne Michelle Schneider
Não é segredo algum que o atual presidente da República e muitos congressistas elegeram-se com um discurso conservador e até retrógrado nos costumes, neoliberal na economia e propositivo retórico no que diz respeito aos profissionais de segurança pública e militares das Forças Armadas. Categorias conservadoras em sua gênese e que possuem um poder de influência muito grande junto ao eleitorado brasileiro – muito em função da incompreensão acerca do papel desses profissionais junto à formação da nação brasileira.
Não obstante o apoio recebido, em alguns casos beirando o fanatismo desenfreado, no que tange aos profissionais de segurança pública, a tão buscada valorização e respeito não passou de mero discurso demagógico. E isso se comprova tendo em vista que, passados dois anos de mandato, absolutamente nada foi feito que se possa dizer que os policiais do Brasil foram ouvidos, valorizados e respeitados. Situação que fica muito clara quando em plena pandemia ignora-se solenemente esses profissionais no que tange à prioridade na vacinação.
Em que pese se afirme hoje que a doença apresenta uma taxa de letalidade menor quando comparada a outras doenças infecciosas causadas por outros coronavírus, o cenário atual é desafiador. Tanto nos países centrais como nos periféricos, os sistemas de saúde vêm funcionando à beira de um colapso, revelado pela falta de leitos, insumos, equipamentos e profissionais capacitados para receber e tratar todos os doentes.
Em muitos países, como Itália, Espanha e Estados Unidos, a situação se agudizou de tal forma que as pessoas passaram a morrer em suas casas. A pandemia aprofundou mais ainda as desigualdades sociais. Para o futuro, já se sabe que o risco da superveniência de outros surtos de doenças infectocontagiosas é hoje mais alto, o que impõe a todos extraordinários esforços adaptativos e colaborativos.
Em todos os estados foram necessárias medidas drásticas a fim de conter a transmissão da Covid-19 por meio, principalmente, da limitações e até a proibição da circulação de pessoas. Neste contexto, estavam lá os policiais para fazer cumprir as normas e atos normativos editados pelas autoridades. Ou seja, expondo-se, sendo cada vez mais exigidos e pressionados, haja vista a peculiaridade de sua atuação ostensiva e preventiva. Assim, nada mais natural e necessário que reconhecer publicamente a sua importância enquanto agentes de manutenção da paz social, notadamente durante a grave crise que enfrentamos. Isso por si só justificaria a sua vacinação prioritária.
Mas apesar de todos os discursos de reconhecimento, valorização e respeito, de prático, nada, sequer uma medida de priorização na vacinação para esta categoria foi, de fato, realizada pelo Governo Federal. Lembrando que o atual mandatário foi eleito com o apoio do capital eleitoral de que goza junto às forças de segurança pública. Alias, frise-se, sequer um levantamento nacional acerca do número de policiais que foram a óbito por conta da pandemia o governo federal possui. E nem se fale em dados como número de contaminados, policiais com comorbidades, etc.
Dito isso, e diante desta situação, é alarmante a condição dos profissionais de segurança pública, quando se sabe que, por exemplo, no estado de São Paulo estão morrendo mais policiais vítimas da Covid-19 do que em confronto com marginais. Uma situação que nos mostra que a imensa maioria destes profissionais, para além de ainda não ter uma valorização salarial de acordo com a importância da sua profissão, somado com uma saúde nunca foi da melhores e que é solenemente ignorada pelas autoridades. Notadamente no que diz respeito às questões de saúde mental (situação que leva a uma baixa da imunidade e, por conseguinte a uma possibilidade de contaminação mais rápida). Agora precisam conviver com os riscos da pandemia, sem sequer estarem entre as categorias prioritárias no que tange à vacinação.
Não basta só atuar nas ruas, expondo-se diariamente a toda a sorte de riscos e violências que acontecem corriqueiramente no Brasil. Sem apoio, reconhecimento de fato e de direito, com condições aviltantes de trabalho e escalas. Agora temos mais, temos os riscos de doenças infectocontagiosas como a Covid-19 e o desdém das autoridades que, como sempre, só discursam.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública nos dizem que a pandemia impactou severamente profissionais de segurança pública no mundo todo. Em Nova York, em abril de 2020, cerca de 20% do efetivo estava em licença médica em decorrência da doença. Situação que mostrou a todos uma espécie de prelúdio a anunciar o que viria a acontecer no mundo.
Pergunta-se: o que foi feito para proteger estes profissionais no Brasil? Importante frisar que neste caso, nem o discurso veio. Ignorou-se que estes trabalhadores atuam nas ruas, na linha de frente nos serviços essenciais, jogando-os à própria sorte, a ponto de centenas de milhares terem sido contaminados por falta de equipamento individual e treinamento específico, acarretando o afastamento de muitos por estarem contaminados ou com suspeita de contaminação e que não puderam seguir realizando as tarefas – essenciais à manutenção da paz social dentro de um Estado Democrático de Direito. São fatores que trazem como consequência imediata a sobrecarga de trabalho para os que permaneceram, gerando mais cansaço e mais estresse, fazendo girar a roda do secular descaso com os trabalhadores e trabalhadoras de segurança pública.
É importante esclarecer que, para fazer frente à pandemia, o governo federal, os governos estaduais e municipais adotaram medidas nas mais diversas áreas (não obstante o ceticismo e a irresponsabilidade de alguns). Recentemente, com atraso, e de forma confusa, o Ministério da Saúde atuou no sentido da implementação de um plano de vacinação – que ocorre mesmo com a notória escassez de vacinas – que deverá seguir o calendário estipulado, segundo “critérios de exposição à infecção e de maiores riscos para agravamento e óbito pela doença”. Devendo o escalonamento desses grupos ser feito conforme a disponibilidade das doses de vacina, após a “liberação para uso emergencial pela Anvisa.”
O calendário de vacina contra a Covid-19 é organizado de acordo com o reconhecimento de grupos prioritários. Conforme o plano do governo federal, é composto por “pessoas com 60 anos ou mais institucionalizadas, pessoas com deficiência institucionalizadas, povos indígenas vivendo em terras indígenas, trabalhadores de saúde, pessoas de 75 anos ou mais; povos e comunidades tradicionais ribeirinhas; povos e comunidades tradicionais quilombolas, pessoas de 60 a 74 anos, pessoas com comorbidades, com deficiência permanente grave, em situação de rua, população privada de liberdade, trabalhadores da educação do ensino básico e do ensino superior, forças de segurança e salvamento, Forças Armadas, trabalhadores de transporte coletivo rodoviário de passageiros, de transporte metroviário e ferroviário, s de transporte aéreo e de transporte aquaviário, caminhoneiros, trabalhadores portuários, trabalhadores industriais”.
Percebe-se uma grande confusão, pois somente dentro dos grupos prioritários temos cerca de 77 milhões de pessoas. Em um cenário sem vacinas, o fato gerou uma Ação Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no STF (Supremo Tribunal Federal), de número 754: “em face de ato do presidente da República que desautorizou a assinatura do Ministério da Saúde no protocolo de intenção de aquisição da vacina CoronaVac, [...], em clara violação a preceitos fundamentais da CF, sobretudo ao direito a%u0300 vida e saúde do povo, da não discriminação, bem como do dever de impessoalidade, moralidade e eficiência da administração pública e do interesse público”.
Ou seja, o governo federal foi instigado a esclarecer a ordem de prioridade, ao que respondeu que a vacinação será realizada de forma escalonada, sem esclarecer como se daria este escalonamento dentro dos grupo prioritários e sem citar os profissionais de segurança pública.
Não contente em mais confundir do que esclarecer, o governo federal apresentou o segundo informe do Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19, no qual estão “policiais federais, militares, civis e rodoviários; bombeiros militares e civis; e guardas municipais”. Todavia, esse grupo de profissionais não está, como deveria, entre os prioritários dentro dos prioritários. E são esses profissionais que, em última instância, garantem a própria existência do Estado. Se ainda é verdade que o Estado sobrevive às custas do monopólio da força e da violência institucionalizada, também é verdade que isso só é possível graças às forças de segurança pública, que executam manu militari as suas decisões.
Em suma, da fala à prática existe um abismo, e este abismo está vitimando o público que mais milita em favor do presidente da República, que continua só discursando.
Elisandro Lotin de Souza - Membro do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, policial militar, especialista em Ciências Penais em Segurança Pública, e mestre em Gestão de Políticas Públicas
Anne Michelle Schneider - Advogada no Brasil e em Portugal, mestre em Criminologia pela Universidade Fernando Pessoa, no Porto, especialista em Direitos Humanos pelo Instituto Ius Gentium Coninbrigae/Universidade de Coimbra, mestranda em Direito Internacional Público e Europeu na Faculdade de Direito de Coimbra.