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PLANTÃO DIGITAL: Entre a tentativa de celeridade e a realidade na ponta da linha
Na prática, a experiência dos policiais que atuam na ponta da linha do serviço, realizando prisões e encaminhamento à autoridade de polícia judiciária, não tem refletido o objetivo da proposta. A espera, em algumas situações, tem ultrapassado 12 horas, tanto para a realidade da capital quanto do interior do Estado.
16/06/2022 12h50
Por: Carlos Nascimento Fonte: JULIANA LEMES DA CRUZ

No final de 2021 foi inaugurada em Minas Gerais a Central Estadual do Plantão Digital da Polícia Civil, com base no Projeto de Lei nº 802/2019. A proposta objetiva otimizar a prestação de serviços, oferecendo, dentre outros elementos, celeridade ao trabalho das Polícias Civil e Militar, tornando eficiente o recebimento das ocorrências policiais com pessoas conduzidas/presas por meio da realização de videoconferências. A estratégia parece representar uma consequência do arrocho provocado pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que prevê limites no que tange às despesas com pessoal, afetando a abertura de vagas no campo da segurança pública.

Nesse sentido, no momento que precedeu a criação do Plantão Digital, deputados mineiros registraram na Assembleia Legislativa mineira o alerta de que a medida não exime o governo de investir recurso público na segurança, bem como repor o déficit de policiais civis, como preceitua a Lei Complementar 129/2013. Em Minas, a Polícia Civil atua com aproximadamente 60% do efetivo previsto em Lei.

Na prática, a experiência dos policiais que atuam na ponta da linha do serviço, realizando prisões e encaminhamento à autoridade de polícia judiciária, não tem refletido o que objetiva a proposta. O novo formato de recebimento de ocorrências provocou não a costumeira dificuldade de apropriação de um procedimento diferente do habitual, mas sim problemas em cadeia. Ou seja, questões que se apresentam ainda mais complexificadas em razão do longo período de espera dos policiais após a conclusão do Registro de Eventos de Defesa Social (REDS) – boletim de ocorrência – , que entra, na sequência, em uma fila de espera virtual que compila a demanda de outras regiões do Estado. Sobre esse cenário, tenho observado que os discursos e narrativas de policiais, advogados e pessoas envolvidas em ocorrências com autor preso, denotam, claramente, descontentamento com o novo sistema. A espera, em algumas situações, tem ultrapassado 12 horas, tanto para a realidade da capital quanto do interior do Estado.

A partir da coleta de relatos informais de envolvidos nas ocorrências policiais da capital e do interior, e sob a perspectiva da prestação de serviço de segurança pública (demandantes e demandados), elenquei três razões para a reflexão coletiva sobre os impactos da demora na finalização das ocorrências em face do Plantão Digital em Minas:

(1) Situação da pessoa sob custódia;

(2) Situação da pessoa vitimada e testemunhas e

(3) Situação dos profissionais envolvidos.

Situação da pessoa sob custódia – A condução da pessoa presa em flagrante delito, de responsabilidade do agente estatal, condiciona uma série de medidas que se relacionam à dignidade da pessoa humana que, no caso, atrela-se no primeiro momento à apresentação do conduzido, “sem demora”, à autoridade competente, como disposto no Pacto de San Jose da Costa Rica. Em um segundo momento, respeito às condições objetivas para a supressão das suas necessidades básicas, que envolvem, além de alimentação e acesso à água potável, espaço e sanitário adequados. Se, em regra, constitui responsabilidade do Estado o zelo pela integridade física e moral da pessoa sob sua custódia, logo, a supressão de suas necessidades básicas durante o desenvolvimento do processo que resultará na ratificação do flagrante delito, também deveria ser algo a ser seriamente considerado, especialmente pela realidade da demora para a finalização da ocorrência no âmbito da Delegacia de Polícia;

Situação da pessoa vitimada ou testemunhas – Similarmente ao caso da pessoa sob custódia estatal, a vítima constitui, mesmo que momentaneamente, pessoa em situação de vulnerabilidade. Seja na forma física, socioeconômica ou mesmo emocional, como é o caso das meninas e mulheres violentadas por pessoas da própria família ou em razão de serem do gênero feminino. Nesse caso, a amplificada demora para a finalização do atendimento tem contribuído para a desistência da vítima nos casos que demandam representação. Sob outra ótica, a demora geraria situações consideradas como uma espécie de violência institucional, tipificada sob a Lei 14.321/22. Quanto às testemunhas, mesmo que motivadas a contribuir para a elucidação do fato, também são desestimuladas pelos longos períodos de espera.

Situação dos profissionais envolvidos – Diante da certeza de que permanecerão por algumas horas na fila do Plantão Digital, policiais militares que atuam na ponta dos serviços têm relatado sobre tais condições às instituições classistas, sugerindo mudanças. Por tal motivo, o tema tem sido alvo de análise, que já alerta sobre a precarização do trabalho policial em ambientes sabidamente pouco estruturados (internet/computadores/assentos), associada à desmotivação para o cumprimento de metas relativas à prisão ou apreensão de armas e substâncias entorpecentes. Essas situações também são alvo de demora. No bojo desse cenário, advogados e advogadas, bem como familiares de envolvidos nas ocorrências aguardam ansiosos pela conclusão do processo o que, por si só, já é tenso. As guarnições policiais empenhadas com conduzidos, consequentemente, ficam indisponíveis para atendimento de outras demandas da população. Essa situação  pressiona o parco efetivo existente e pode deixar usuários do serviço desassistidos por longos períodos, uma vez que a Polícia Militar mineira atua com aproximadamente 75% do efetivo previsto. Alerto para os casos de ocorrências levadas por policiais de municípios menores até a Delegacia Regional, onde não poderão sair enquanto o conduzido não for devidamente apresentado. Por óbvio, se ainda não tiver ocorrido, resultará desse cenário potencial dificuldade no gerenciamento dos empenhos dos recursos humanos para atendimento das ocorrências, desde as mais simples até as mais complexas.

“É muita coisa que envolve, sabe? E principalmente o ser humano. O ser humano que está por trás da nossa instituição. O ser humano que apanhou do marido. O ser humano que viu o crime e está disposto a ajudar. E isso tudo envolve o nosso sentimento de querer fazer o bem e de dar uma resposta à sociedade […]”. (Profissional da segurança pública)

Ao que parece, em curtíssimo prazo, a implantação do Plantão Digital provocou, onde se encontra em funcionamento, impactos importantes no desenvolvimento do trabalho profissional do campo da segurança pública. Isso se estende aos profissionais que têm suas atividades diretamente relacionadas, como é o caso dos(as) advogados(as). Para além disso, destaco que a citada política, se não reavaliada a tempo de receber ajustes, pode desarticular todo um esquema de prevenção, enfrentamento e combate à violência e à criminalidade, impactando fortemente os locais com pouca estrutura, pouco efetivo e onde há muitas pessoas com pouca instrução.

Por fim, do ponto de análise da prestação de serviço à comunidade, que traduz o fim último das instituições públicas, a implementação da nova dinâmica de recebimento de ocorrências policiais no âmbito do estado de Minas tem se traduzido no movimento inverso ao que se objetivou a proposta inicial.

Do ponto de análise do trabalho profissional dos policiais civis e ou militares, ainda não é possível produzir informações fidedignas, uma vez que as respectivas instituições ainda não disponibilizaram os resultados do – provável – monitoramento que tem sido realizado a respeito do novo formato de atividade. Por outro lado, também não se tem notícia de estudos que abordem a questão, pontualmente, a respeito dos impactos (positivos/negativos) do regime de Plantão Digital na atividade-fim dos policiais da ponta da linha.

O presente texto trata-se de recorte simplificado de considerações parciais sobre os desafios à implementação das políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres, a ser considerados no texto final do estudo doutoral sob minha condução, que segue em curso.

JULIANA LEMES DA CRUZ - Doutoranda em Política Social pela UFF; Assistente Social e Mestra em Saúde, Sociedade e Ambiente pela UFVJM; Membro do GEPAF/UFVJM; Coordenadora do Projeto Mulher Livre de Violência; Colaboradora do INBRADIM; Colunista do Jornal Diário Tribuna; Professora de Ensino Superior; Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, lotada em Teófilo Otoni; membro do FBSP.