Em 24 de dezembro de 2020, foi publicado o Decreto nº 10.590/2020, que concede indulto natalino a pessoas apenadas. Apesar de ter afirmado, como presidente eleito, que não concederia indulto durante seu governo, Bolsonaro mantém, ainda que parcialmente, a tradição política brasileira pós-redemocratização de perdão coletivo de penas pelo chefe do Executivo.
O indulto é ato de clemência constitucional, de natureza não individual, que extingue a pena de uma coletividade indeterminada de pessoas que atendam a critérios estabelecidos em decreto presidencial. Previsto no art. 84, XII, da Constituição Federal como ato privativo do presidente da República, tem sido historicamente concedido por razões humanitárias, próximo à data do Natal, e se revela como instrumento de política criminal do Poder Executivo, que busca, com base no sistema de freios e contrapesos, corrigir eventuais erros ou excessos causados pela atuação do Legislativo ou do Judiciário, acomodando “situações que normas penais inadequadas tornaram iniquamente gravosas”, como ensinou Basileu Garcia.
Enquanto ato privativo do presidente da República e instrumento de política criminal cujo teor, embora conte com limitações constitucionais e legais, obedece a critérios de conveniência e oportunidade. O indulto tende a refletir o espectro político-ideológico do chefe do Executivo. O Decreto 10.590/2020, seguindo a mesma linha do Decreto 10.189/2019, é um evidente exemplo disso e tem a cara do governo Bolsonaro.
Embora o presidente tenha publicado decreto de indulto, o conteúdo de tal ato, como ocorreu em 2019, rompe com a tradição de indultos humanitários de natureza impessoal, focados essencialmente na natureza dos delitos, no tempo de pena cumprido e nas condições de saúde, vulnerabilidade e primariedade ou reincidência das pessoas beneficiadas.
Diferentemente de seus antecessores e no ano em que talvez um indulto humanitário mais fosse necessário ao país ante a pandemia que assola o mundo, Bolsonaro apresentou um decreto enxuto quanto às hipóteses de perdão da pena, mas que reflete de maneira escancarada seu projeto político.
No primeiro artigo, o texto traz hipótese de perdão para pessoas acometidas das enfermidades listadas em seus incisos, dentre as quais estão a paraplegia, tetraplegia, neoplasia maligna e síndrome da deficiência imunológica adquirida, desde que atendidas outras condições específicas para cada caso, como comprovação por laudo médico ou que a enfermidade imponha severa limitação de atividades e exija cuidados contínuos que não possam ser prestados no estabelecimento penal.
À data de sua publicação, dados do Conselho Nacional de Justiça apontavam que ao menos 54.807 pessoas, entre presos e servidores, já foram contaminadas pelo novo coronavírus em prisões no país e que 129 presos e 93 servidores morreram em decorrência da Covid-19. Entretanto, o decreto de Bolsonaro, publicado quando o Brasil ingressava de vez na segunda onda da pandemia, não trouxe qualquer previsão de indulto para pessoas que compõem o chamado grupo de risco daquela doença.
Gestantes, idosos, indígenas, pessoas com doenças cardíacas ou diabéticas não foram contemplados pelo decreto, nem mesmo para casos de crimes de baixíssima gravidade. Também não foram indultadas quaisquer medidas de segurança e foi expressamente excluída a possibilidade de indulto para condenações por tráfico privilegiado, ainda que seja pacífico o entendimento quanto a sua não hediondez.
Por outro lado, o segundo e terceiro artigos do decreto, como em 2019, indultam exclusivamente agentes do sistema nacional de segurança pública e militares das Forças Armadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem. Para os primeiros, Bolsonaro extinguiu a pena nos casos de crimes cometidos com excesso culposo, independentemente do tempo de pena cumprida, e de crimes culposos, se cumprido um sexto da pena. Foram ainda perdoados os agentes que tenham sido condenados por ato cometido, mesmo que fora do serviço, em razão de risco decorrente da sua condição funcional ou em razão do seu dever de agir.
Se em 2019 a concessão de indulto a agentes de segurança pública causou alvoroço entre profissionais e acadêmicos da área jurídica, em 2020 tal previsão parece-nos ainda mais grave. Apesar de ser ato discricionário do presidente, o indulto não prescinde de obediência aos limites legais e constitucionais. A concessão de indulto a uma categoria profissional específica afronta o princípio da impessoalidade, um dos pilares da Administração Pública previsto no artigo 37 da Constituição Federal. A violação à impessoalidade, já apontada em diversas críticas endereçadas ao decreto de 2019, é ainda mais aviltante em 2020, ante a urgência de se diminuir a superlotação das unidades prisionais como forma de evitar o contágio e a morte pelo novo coronavírus.
O caráter sucinto do decreto – que indulta agentes de segurança pública, mas não pessoas do grupo de risco da Covid-19, e desconsidera a gravidade do delito e o tempo de pena cumprida como critérios, possui quase nenhum impacto na redução da população carcerária, mas contém forte simbolismo.
Premia o mau policial que comete crimes no desempenho da função ou em razão dela; deixa morrerem as pessoas mais vulneráveis ao coronavírus e mantém as prisões superlotadas. O decreto ignora a natureza humanitária do indulto, faz pouco caso de um país enlutado e evidencia, mais uma vez, para quem o presidente governa. O Decreto 10.590/2020 tem, afinal, a cara de Bolsonaro.
Liana Lisboa Correia - Defensora Pública no Estado do Ceará, mestranda em Direito na Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Salvador (UNIFACS).