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A SEGURANÇA PRIVADA NÃO CONTROLADA

Mais da metade da força de trabalho da segurança privada atua à margem da regulação e do controle da Polícia Federal. A clandestinidade é um traço estrutural do setor de segurança privada brasileiro.

14/07/2022 às 10h37
Por: Carlos Nascimento Fonte: CLÉBER LOPES
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A SEGURANÇA PRIVADA NÃO CONTROLADA

A segurança privada é um fenômeno mundial. Em países como os Estados Unidos, o número de pessoas ocupadas na segurança privada superou o de pessoas ocupadas nas polícias já em meados dos anos 1970. Dados da primeira década de 2000 indicavam que a força de trabalho empregada na segurança privada superava a força de trabalho das organizações policiais na América Latina, África, Oceania e Europa Central.

O Brasil segue a tendência mundial. Os dados da Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar Contínua (PNADc) indicam que, no primeiro trimestre de 2022, o número estimado de pessoas ocupadas como seguranças era de 1.096.398. Esse número era 1,4 maior do que o de pessoas ocupadas como agentes de segurança pública, estimado em 772.2022. Esses dados indicam que o setor privado responde pela maior parte do estoque de serviços de proteção disponíveis na sociedade brasileira. Esse estoque de proteção é particularmente saliente na região Sudeste, que sozinha concentra cerca de 44% do setor de segurança privada brasileiro (estimativa de 481.818 seguranças).

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022

Cabe ao Departamento de Polícia Federal (DPF) controlar o setor de segurança privada. Na prática, o controle do DPF é precário, pois há uma parcela significativa do setor que atua de forma clandestina. Mensurar o tamanho do segmento de segurança privada não controlado pela Polícia Federal é uma tarefa difícil. Apesar das limitações, é possível obter uma estimativa conservadora do tamanho do segmento de segurança privada não controlado por meio da comparação dos dados da Polícia Federal, que medem a mão de obra empregada no segmento disciplinado pela Lei Federal n° 7.102/83, com os dados da PNADc, que medem todo o universo de pessoas que declaram ocupação como segurança.

Essa comparação permite afirmar que mais da metade da força de trabalho da segurança privada atua à margem da regulação e do controle do Departamento de Polícia Federal (DPF). As diferenças percentuais entre os dados do DPF e da PNADc têm variado pouco ao longo do tempo (entre 51% e 56%). Essa pequena variação sugere que a chamada clandestinidade é um traço estrutural do setor de segurança privada brasileiro.

No primeiro trimestre de 2022, aproximadamente 55% da força de trabalho da segurança privada (estimativa de cerca de 600 mil pessoas) era composta por seguranças que não atuavam dentro dos parâmetros legais estabelecidos pela Lei Federal n° 7.102/83. O problema era significativamente maior nas regiões Norte e Nordeste, onde o segmento não regulado e controlado pelo DPF alcançava 64% e 61% do universo total de seguranças, respectivamente. Nas demais regiões, esse segmento correspondia a cerca de 51% da força de trabalho do setor.

Fonte: Anuário de Segurança Pública 2022

Uma característica da segurança privada não controlada pelo DPF é sua alta prevalência fora da atividade econômica de “vigilância, segurança, transporte de valores e investigação”, que abrange basicamente o universo das empresas especializadas na prestação de serviços de segurança privada disciplinados pela Lei Federal n° 7.102/83.

A comparação dos dados da Polícia Federal com os dados da PNADc revela números próximos de pessoas trabalhando na linha de frente das empresas especializadas, sugerindo existir relativa baixa clandestinidade nesse segmento. Enquanto o DPF aponta para a existência de 512.119 vigilantes atuando em empresas especializadas regulares, a PNADc fornece uma estimativa que varia de 513.146 a 610.998 seguranças atuando em empresas especializadas regulares e irregulares.

Fora desse universo especializado, entretanto, as diferenças entre os dados do DPF e os da PNADc são enormes. Os dados do DPF indicam a existência de apenas 24.873 vigilantes atuando regularmente na chamada segurança orgânica, isto é, em organizações que contratam diretamente seguranças ao invés de terceirizar os serviços de proteção para empresas especializadas. Já os dados da PNADc apontam para uma estimativa de 534.252 seguranças ocupados na segurança orgânica dos mais variados ramos de atividade econômica ou em organizações cujos principais serviços prestados não são os de segurança. Em outros termos, aproximadamente metade de toda a força de trabalho da segurança privada está dispersa em atividades econômicas não especializadas que organizam ou prestam serviços de segurança privada sem o controle da Polícia Federal.

O controle de todo o universo da segurança privada depende de inúmeros fatores. Ao menos dois podem ser destacados. O primeiro é enfrentar o problema do segundo emprego dos agentes de segurança pública na segurança privada. Os dados aqui apresentados não captam esse problema, mas sabemos que ele existe. A complacência histórica com o bico policial acabou por convertê-lo em uma política informal de compensação aos baixos salários pagos a muitos profissionais de segurança pública. A reversão dessa situação depende de políticas de valorização das carreiras dos agentes de segurança pública; da alteração das escalas de trabalho que criam condições propícias para o segundo emprego; e da definição de regras para a prestação de serviços de segurança agenciados pelas próprias organizações de segurança pública.

O segundo é ampliar a regulação estatal para serviços hoje não regulados e melhorar a capacidade de fiscalização e controle do Estado sobre provedores que atuam sem a autorização da Polícia Federal. Hoje essa capacidade é limitada tanto pela carência de recursos humanos da Polícia Federal, quanto pela ausência de recursos legais para sancionar os provedores de segurança clandestinos. Contra a primeira limitação, alguns setores têm defendido que a Polícia Militar assuma o papel de autorizar e fiscalizar as atividades de segurança privada. Trata-se de mudança que resultaria em um provável enfraquecimento do controle estatal sobre o segmento de segurança privada irregular, considerando que os policiais militares participam ativamente desse segmento. Contra a segunda limitação, a comunidade da segurança privada vem defendendo a aprovação do Estatuto da Segurança Privada. Aprovado pela Câmara dos Deputados em 2016 e aguardando votação do Senado Federal, o Estatuto mantém a Polícia Federal como agência reguladora da segurança privada e traz avanços importantes, tais como criar sanções administrativas e penais para a provisão irregular de segurança privada e ampliar a regulação estatal para serviços de segurança eletrônica, segurança de eventos em espaços comunais, gerenciamento de riscos, dentre outros.

Frequentamos muitos dos espaços que são policiados por seguranças cujo treinamento, instrumentos de trabalho e parâmetros de atuação fogem do controle estatal. Como os dados da PNADc indicam, esses seguranças atuam amplamente em eventos sociais, estabelecimentos comerciais, instituições de ensino, hospitais, equipamentos públicos e espaços de trabalho em geral. Sem controle estatal, o policiamento exercido por esses agentes representa riscos à segurança de todos. Daí a necessidade de regular e controlar a força de trabalho da segurança privada para assegurar serviços que sejam ao mesmo tempo eficientes e respeitosos dos direitos dos cidadãos.

CLÉBER LOPES  - Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina e coordenador do LEGS - Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança.

 * Texto em versão condensada. Para obter a versão originalmente publicada no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, acesse AQUI: 

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