O medo do agressor constitui um dos elementos decisivos no processo de tomada de decisão das mulheres quanto ao rompimento do ciclo da violência doméstica. Pesquisa publicada no ano de 2021 pelo Data Senado em parceria com o Observatório da Violência contra a Mulher indicou que o medo do agressor representou a maioria das respostas à questão sobre o que leva uma mulher a não denunciar uma agressão (75%). Em segundo plano, ficaram as motivações associadas à dependência financeira e a criação dos filhos.
Nessa direção, dentre as temáticas abordadas no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, destaque para as chamadas de emergência realizadas para o número 190. Conforme constatado pela equipe do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre os anos de 2020 e 2021 houve um acréscimo de 23 mil novas chamadas via ‘Disque 190’.
Se por um lado, esse pode ser um indicativo de que os casos têm sido mais corriqueiros, por outro, pode indicar que as pessoas estão menos tolerantes às situações de violência contra as mulheres, uma vez que o acionamento da polícia pode ser feito por qualquer pessoa que tome conhecimento da situação, sendo desnecessário que a denúncia seja feita apenas pela pessoa vitimada. Assim, “ao menos uma pessoa ligou, por minuto, em 2021, para o 190, denunciando agressões decorrentes de violência doméstica”. Esta informação segue associada à relevante queda das chamadas 190 (5,3%), para denúncia de crimes não relacionados à violência doméstica.
A difusão de informações sobre o fenômeno da violência doméstica também tem contribuído para que mais mulheres busquem acesso à segurança pública e à justiça por meio dos canais de denúncia, a exemplo do “Disque 190”. No entanto, cabe-nos questionar sobre o alcance desse canal, uma vez que o acionamento de uma emergência que demande a intervenção policial nem sempre pode ser realizada via 190. Situação que ocorre, por exemplo, em 78,3% dos municípios que compõem uma das Regiões Integradas de Segurança Pública de Minas Gerais.
Dos 60 municípios que integram a 15ª RISP, apenas 13 (21,6%) dispõem do recurso. Isso significa uma abrangência de 51,02% da população do total de municípios da RISP. Sendo assim, nos demais 47 municípios (78,3%), que representam 48,97% da população da região, dificilmente as campanhas que destacam, tão somente, o acionamento do “Disque 190” nos casos de flagrância de violência doméstica e familiar contra uma mulher, terão o sucesso almejado. Essa linguagem será rapidamente identificada pelas mulheres como: “Esse serviço não é pra mim”, traduzindo, por conseguinte, a política de enfrentamento à violência como excludente. Por essa razão, constitui-se, consequentemente, um complicador à possível responsabilização do autor da violência no ato de sua ocorrência.
Logo, não é possível afirmar que o acesso à segurança pública via “Disque 190” constitui uma realidade para todos. Fato é que, nos municípios onde a estrutura física/logística é precária e falta treinamento dos recursos humanos para atendimento qualificado dos casos de violência doméstica, as mulheres têm menores chances de obterem sucesso na tentativa de resolução da situação que as afetam, o que pode significar elas serem alvo de violência outras vezes.
Em face dessa lacuna, vale lembrar que as campanhas informativas com chamadas similares ao “Denuncie, Disque 190”, e utilizadas como mecanismo para o encorajamento das mulheres para a realização da denúncia, encontram-se, no que tange à finalidade a que se propõem, limitadas. Assim como anteriormente exemplificado, nos municípios do interior de outros estados do país, a denúncia pode não estar sendo possível via “Disque 190” em razão da indisponibilidade do serviço naqueles locais.
Ao menos em Minas Gerais, como alternativa de acesso ao serviço policial, um número de chamada com linha do tipo pré-pago associado a uma operadora telefônica é cadastrado e divulgado à população que necessite acionar a Polícia Militar via telefone. Ressalta-se que qualquer número de chamada, não subsidiado, responde à necessidade do uso de créditos para que complete a ligação. Trata-se uma alternativa que demandará da pessoa que a aciona, no mínimo, um aparelho de telefone habilitado a realizar chamadas locais, o que gera custo. Como falar em acesso aos sistemas de segurança pública e justiça com entraves dessa natureza? De fato, esse é um importante gargalo a ser considerado na formulação das políticas públicas para as mulheres e, infelizmente, pouco explorado.
Em que pese vivamos na era digital, na qual existem, no Brasil, mais de 260 milhões de linhas telefônicas de celular ativas – o que supera o número de habitantes do país –, precisamos pensar no limitado acesso da população das regiões mais remotas e carentes aos recursos tecnológicos.
Vale lembrar que as três principais portas de entrada da mulher em situação de violência são os setores da Assistência Social, por meio da acolhida das equipes do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS); da Saúde, por meio das equipes de técnicos e agentes comunitários da Estratégia Saúde da Família, popularmente reconhecida por vincular-se aos postos/unidades de saúde dos bairros e comunidades rurais; e a Segurança Pública, por meio da atuação diuturna (24hs) de guarnições da Polícia Militar. Estes últimos são os responsáveis pelo atendimento das chamadas de violência doméstica contra a mulher realizadas via “Disque 190”, onde há o recurso.
Para além de ser real o fato da deficiência da política, que admite a indisponibilidade do número de chamada de emergência policial em alguns lugares, vale considerar que o Anuário destacou que as polícias militares estaduais estão sendo cada vez mais demandadas a prestarem, ao menos, atendimento inicial às mulheres vitimadas, o que requer das corporações a qualificação pertinente para que direitos sejam garantidos e a proteção seja efetivada.
Conforme consta no documento, “o que reforça a importância de não apenas os efetivos das unidades especializadas no atendimento às mulheres em situação de violência, mas todo o efetivo policial estar sensibilizado e capacitado para atender essas mulheres”. Nesse sentido, um mau atendimento no momento de maior fragilidade daquela que se encontra em situação de violência pode significar “perdermos essa mulher para sempre”.
Conforme publicado em edição anterior do Fonte Segura (nº 136), o Plano de Denúncia constitui uma alternativa à desigual disponibilidade de serviços associados ao enfrentamento da violência contra as mulheres em municípios de portes diferentes no Brasil. Faz-se necessário, especialmente em territórios onde destacam-se relações interpessoais bem delimitadas junto às figuras de autoridade e prestígio locais. Nesses espaços encontram-se, cristalizados, elementos associados ao machismo estrutural. Isso nos leva a perceber que, quanto menor o município, maior a dificuldade de mensuração da realidade violenta contra as mulheres no âmbito doméstico e familiar, uma vez que os casos não se traduzem em registros oficiais.
No que se refere aos feminicídios, fenômeno que gera notória repercussão social, o Anuário indicou que algumas unidades da federação registraram redução das ocorrências desse tipo, embora tenham constatado um aumento das chamadas via 190, com indicativo de episódios violentos em andamento contra mulheres. É o caso dos Estados do Acre e de São Paulo. Por outro lado, outros dois Estados – Pernambuco e Rio de Janeiro, apresentaram o cenário inverso. Naqueles territórios, registrou-se a redução das chamadas 190 e o aumento dos feminicídios.
O destaque ao ‘Disque 190’ mostra-se importante para que sejam observadas as lacunas persistentes quanto ao acesso das mulheres à segurança pública e ao sistema de justiça. Trata-se de registrar que o serviço ainda não está disponível em todas as localidades, o que alerta para a adequação das campanhas de enfrentamento à violência doméstica e a formulação urgente de estratégias capazes de conceder o primordial nesse contexto: o acesso da população, em especial, das mulheres, aos canais efetivos de denúncia a partir da realidade em que vivem.
JULIANA LEMES DA CRUZ - Doutoranda em Política Social pela UFF; Assistente Social e Mestra em Saúde, Sociedade e Ambiente pela UFVJM; Membro do GEPAF/UFVJM; Coordenadora do Projeto Mulher Livre de Violência; Colaboradora do INBRADIM; Professora de Ensino Superior; e Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, lotada em Teófilo Otoni.