O caso do assassinato do militante do Partido dos Trabalhadores (PT) por um militante bolsonarista policial penal federal não é um caso isolado no Brasil. O crime sintetiza e simboliza um processo de escalada da violência, com roteiro conhecido. O que há de diferente é a percepção de que está se consolidando um tipo de violência no Brasil que necessita de intervenção estatal imediata e de mobilização da sociedade civil.
A violência por questões político-partidárias é recorrente no Brasil, desde os fatos com repercussão ou desdobramentos nacionais até os assassinatos em municípios pequenos. Segundo o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, nas eleições de 2020 houve 84 assassinatos de candidatos e 80 outros ataques com armas aos quais a vítima sobreviveu. Esse tipo de violência é capilarizada. Apesar de terem a mesma motivação de eliminar o adversário, esses atos não estão interligados entre si com um fio indutor e condutor nacional com objetivo comum e valores compartilhados.
Há também os casos de assassinatos políticos no Brasil no período de exceção que foi a Ditadura Militar, em que a violência era a técnica dissuasória promovida pelo Estado Brasileiro contra os opositores, como, por exemplo, contra o ex-presidente Juscelino Kubitschek, segundo descreveu a Comissão Municipal da Verdade de São Paulo em 2013, e contra professores, artistas, jornalistas, alguns militares, entre outros que mobilizavam ações contra a ditadura.
Já o caso do tesoureiro do PT assassinado por um agente de segurança do Estado imbrica esses dois tipos de violência política e guarda semelhanças com o ocorrido em 2018 em Salvador (BA). Naquele episódio, em um espaço de lazer, após discussão sobre a defesa do candidato Bolsonaro, o autor do crime sai do ambiente para se armar (uma faca), e retorna ao ambiente para impor-se. A consequência foi o assassinato do opositor.
A imposição nesse recente tipo de violência concatena diferentes discriminações que se unem pelo método e são conduzidos pela possibilidade de eliminar o opositor. Nas palavras do próprio presidente Bolsonaro, é um contexto do Bem contra o Mal. O “bem” seriam os representantes e defensores da “família tradicional brasileira”, da heteronormatividade, das relações e papéis sociais segundo determinada interpretação da Bíblia Cristã, e da manutenção das relações de poderes econômicos, sociais, políticas e culturais contemporâneas. É a negação de que há dispositivos estruturais racistas, homofóbicos, misóginos, de concentração de renda, entre outros de pauta dita conservadora cristã ou de política econômica liberal. O “Mal” será qualquer representante que diverge em alguns dos pontos do “Bem”. Assim, há uma gradação entre bem e mal, e uma gradação de possível vítima da violência e possível autor. Representante do “mal” recebe a alcunha de “esquerdista”, sejam empresas, instituições, autoridades, ou pessoas não envolvidas profissionalmente com política. Apesar de caricato e reducionista para a complexidade da “violência ideológica”, recorro a esse recurso pela urgência do debate.
Em uma rápida pesquisa no YouTube é possível verificar vereadores, pastores, deputados, empresários, entre outros, ameaçando os políticos, autoridades e militantes “esquerdistas”. Há a fala emblemática do vereador em que, após o ex-presidente Lula orientar militantes a cobrar os parlamentares, contém ameaça de morte por arma e a informação de que o presidente Bolsonaro autorizou que CACs tenham mais armas e munições. Nos casos citados, possíveis agressores com poder de mobilizar outras pessoas.
Por enquanto, o fio condutor e orientador é motivacional e capilar. Esse tipo de violência é recente no Brasil, mas há roteiro conhecido internacionalmente. Inclusive da escalada da violência. Há arregimentação de pessoas que convergem por uma pauta e a categorização da relação do bem contra o mal; há o incentivo do uso da violência contra as pessoas do mal; e há o uso das pessoas do bem para uma tentativa de permanecer no poder político. Eis o roteiro com o episódio final nos EUA com a invasão do Capitólio, tendo como resultado mortes de agentes de segurança e militantes.
No Brasil, há a violência de forma capilar orientada por essa mesma lógica. O ataque às instituições do “mal” também já está em curso como fomento para manutenção de diversos grupos no poder. Assim, as agências de segurança já têm duas frentes de ações urgentes que necessitam de intervenção: a violência ideológica capilar entre pessoas identificáveis por grupo políticos, violência contra espaços políticos partidários e espaços culturais; e a violência ideológica contra instituições e atos institucionalizados.
Para isso, há a necessidade do reconhecimento da Violência por Ideologia e as formas como se expressa. O assassinato do militante do PT, por exemplo, foi tipificado como consequência de um desentendimento pessoal. Outro complicador é que as práticas discriminatórias que violentam minorias cotidianamente no Brasil têm na Violência por Ideologia um catalizador, necessitando de intervenções compreendendo essa dinâmica. Desta forma, as violências estruturadas e estruturantes por misoginia, por racismo, contra a comunidade LGBTQIA+, entre outras, continuam necessitando das intervenções estatais, inclusive das agências de segurança, com destaque para a percepção do catalizador ideológico e os diversos modos de violências, inclusive as virtuais.
Aliás, todas essas violências foram “percebidas” e descortinadas a partir da sociedade civil pelas ações dos movimentos sociais, com construção de dados pela ciência, e ainda encontram resistências políticas no planejamento, implementação e acompanhamento das intervenções de políticas públicas para a redução dos índices dos diversos tipos de violências. Entretanto, é dever do Estado garantir os direitos constitucionais previstos no art. 5º da CRFB, como o direito à vida, à segurança, e o direito à igualdade. As dúvidas que ecoam então são: representantes governamentais têm interesse em intervir em ano eleitoral em uma violência que está ligada a ações de diversos candidatos? O roteiro estadunidense se repetirá no Brasil? Em se repetindo, quais serão as ações dos gestores das agências de segurança, sendo que parte dos operadores governamentais motiva a violência?
GILVAN GOMES DA SILVA - Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.