A violência contra policiais tem tanto uma dimensão “objetiva”, como as mortes e lesões, que serão comentadas aqui, como “subjetiva”, como preconceito, ameaça, assédio moral e sexual. Profissionais de segurança são vítimas de ameaças (75,6% em serviço e 53,1% fora de serviço), são vítimas de assédio moral ou humilhação no ambiente de trabalho (63,5%) e foram discriminados por serem profissionais de segurança pública (65,7% e 73,8% entre policiais militares), segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Os dados de 2021 apresentam algumas permanências em relação aos dados de 2020, mas também algumas inflexões que ganham relevância em razão de suas disparidades. Para nossa análise, algumas delas foram cotejadas com os dados do Anuário que remontam ao ano de 2018, com o propósito de compreender se os fenômenos observados se constituem um quadro mais sedimentado dos cenários nacionais e estaduais. Tratemos inicialmente dos dados de morte em serviço de policiais por confronto ou lesão corporal. Os dados se referem a policiais militares e civis.
O ano 2021 nos apresentou um cenário de estabilidade desse indicador, com menos oito casos de mortes nessa categoria, o que representa uma queda pouco expressiva de 4,0%. Há que se comemorar a variação negativa anual, ainda mais por representar uma alteração do último ano desse indicador, que mostrou alta de 19,6% na comparação de 2020 e 2021. Por seu turno, as dinâmicas que geram mortes aos policiais parecem ter se alterado, pois, apesar da queda do número de vítimas, se observados os números relativos apenas às mortes que decorreram de lesões corporais, verifica-se um aumento tanto entre policiais civis e militares. As causas dessas mortes não são claras. Apenas em termos de hipótese, acreditamos que mortes decorram de acidentes de trânsito, uma das principais causas de morte de policiais em serviço, embora a equipe do FBSP solicite especificamente os casos de policiais vítimas de homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte, o que se explicaria pelo fato de que a menor quantidade de veículos nas ruas favoreceria que os motoristas policiais ficassem expostos a maiores riscos por poderem imprimir maior velocidade às viaturas.
Apesar de um quadro nacional de queda dos números, houve aumentos significativos de mortes de policiais em alguns Estados. São os casos de Rio Grande do Norte (cinco casos em 2020 contra onze casos em 2021, todos por lesões corporais), Rio Grande do Sul (que registrou seis casos contra nenhum em 2020), Bahia, em relação aos policiais militares (um caso em 2020 contra cinco casos em 2021) e Rio de Janeiro (aumento de 45,5%, com 64 casos registrados em 2021 ante 44 em 2020). Sobre esses Estados – Bahia e Rio de Janeiro – dedicaremos uma leitura mais atenta adiante. Apesar da baixíssima relevância estatística, verificam-se aumentos importantes em Santa Catarina, Paraíba e Rio Grande do Norte, com números superiores a 100%.
Por outro lado, houve redução das mortes de policiais em alguns Estados, reproduzindo o quadro nacional. São os casos de Minas Gerais, que, em 2020, apresentou cinco casos, enquanto em 2021 não houve quaisquer registros, e Rondônia, com uma queda de 60% (cinco casos em 2020 ante dois casos em 2021), apenas para enfatizar alguns Estados de maior representatividade estatística, ainda que outras unidades também tenham exibido resultados positivos, como Goiás, Paraná, Sergipe, Mato Grosso do Sul, Acre e Roraima.
Na comparação entre 2020 e 2021, São Paulo apresentou uma redução de 49%, opondo-se à estabilidade de 60 casos entre 2017 e 2018 e de alta de 44,1% entre 2019 e 2020. Em 2021, foram registrados 25 policiais mortos em serviço por confrontos e lesões corporais, números que se mantiveram estáveis na Polícia Civil (com a redução de um caso na variável lesão corporal), mas que foram significativamente reduzidos em relação à Polícia Militar (20 mortos por confronto ou lesão corporal em 2020 ante 11 em 2021). Significa dizer que a queda desses números se deu em razão de dinâmicas mais próprias à Polícia Militar estadual. Uma das mudanças introduzidas pela PMESP foi a implantação de câmeras corporais, que teriam reduzido as mortes decorrentes da intervenção policial. Em termos de hipótese, acreditamos que isso também tenha repercutido em menores níveis de mortes sofridas pelos policiais militares. Isso por duas razões: a primeira delas é que, em razão das câmeras, policiais militares em campo buscam estratégias para se evitar o confronto armado, o que os coloca mais atentos a protocolos institucionais que privilegiam o uso gradual da força, o que reduz tanto a letalidade de suas ações, como os coloca em menores níveis de risco. A outra razão é que as câmeras corporais teriam, segundo conversas com oficiais envolvidos, a capacidade de mitigar ações violentas por parte dos agressores não-policiais.
O Rio de Janeiro merece destaque à parte em razão de que a alta de 45,5% na comparação entre 2020 e 2021 repete a tendência de 2019-2020, que igualmente apresentou uma alta, na dimensão de 7,3% (IPEA/FBSP, 2021). Nesses dois anos, foram 108 policiais fluminenses mortos em serviço. Estimando-se que as mortes em serviço representam um terço das mortes violentas sofridas por policiais, cujas circunstâncias se dão em sua maior parte fora do turno de serviço, pode-se pensar que são mais de 300 policiais do Rio de Janeiro mortos nos últimos dois anos.
Não sem razão, uma das evidências desse estado de coisas é que o mesmo Rio de Janeiro traz um acumulado de suicídio de policiais de 83,36% – foram seis casos registrados em 2019, nove registros em 2020 e quinze em 2021 – números que serão muito maiores em razão da subnotificação de casos de suicídio pelas corporações policiais, encontrada pela literatura em todo o mundo. Não se pode deixar de pensar esses números contrapostos às graves ocorrências de Jacarezinho e na Vila Cruzeiro. Não se trata apenas de questões de protocolos e sentidos de política de segurança pública no Rio de Janeiro, mas, também, de questões mais mundanas, humanas, aflitivas. Não há espaço para racionalidades quando as pessoas estão em uma espiral de violência – umas contra as outras e contra si mesmas.
A Bahia que, não obstante não ter apresentado variação para os suicídios nos últimos dois anos, apresentou aumento acumulado de 152% nos últimos quatro anos, conforme se verifica a partir das edições do Anuário a partir de 2019, com 22 casos desde então. Somados aos 25 policiais mortos em serviço por confrontos e lesões corporais nos anos de 2020 e 2021, o que performa um aumento de 18,2% (dentre os quais a elevação de cinco casos dentre policiais militares), pode explicar níveis mais elevados de violência policial.
ALAN FERNANDES - Coronel da Reserva da PM/SP, Doutor em Administração Pública e Governo pela FGV EAESP.