Nas últimas décadas, o chamado “novo cangaço” se tornou a principal modalidade de crime contra o patrimônio público em todas as regiões do país. Trata-se de roubos e furtos contra instituições financeiras que costumam se realizar altas horas da noite e têm nas cidades pequenas e médias seus alvos preferenciais. São empreendidos por quadrilhas com dezenas de assaltantes fortemente armados. Obstruindo a atuação das forças policias, dominam cidades inteiras, ameaçam moradores, fazem reféns e disseminam medo. Utilizam explosivos para violar caixas eletrônicos e cofres das unidades bancárias locais, que são assaltadas em simultaneidade. Não raro, a quantidade de explosivos acionada é excessiva, acarretando demolições de agências bancárias inteiras e de imóveis vizinhos.
Embora as violências ostensivas empregadas nesses assaltos os façam parecer toscos e mal elaborados, trata-se de operações minuciosamente planejadas. As quadrilhas buscam amenizar riscos, investindo em conhecimento especializado e logística. São realizadas pesquisas sobre os alvos e suas rotinas de funcionamento. Ferramentas centrais do “novo cangaço”, as armas utilizadas nessas ações até meados dos anos 2010 era, em sua totalidade, obtidas clandestinamente. Nos últimos anos, mudanças nas legislações vieram facilitar a aquisição legal de armas no país e medidas governamentais reduziram seus custos, favorecendo também sua posse por quadrilhas de assaltantes. Nas situações de que tive conhecimento, os assaltantes em questão não efetuaram eles mesmos compra de armas. Intermediários as obtiveram junto a fábricas e lojas de armamento, repassando-as em seguida a meus entrevistados, que vieram a utilizá-las em ações do chamado “novo cangaço”. Os modelos mais elogiados por meus interlocutores de pesquisa têm sido os fuzis AR-15 e AK-47 e as metralhadoras UZI e .50, sobretudo esta última. Embora pese 38 kg e demande o uso de um tripé, a preferência pela .50 seria motivada pelo seu “poder de fogo”, capaz de romper blindagens automotivas e abater helicópteros. Também são acessórios relevantes nessas ações coletes à prova de balas e balaclavas, estas usadas para ocultar rostos, assim como os “miguelitos”, objetos metálicos, pontiagudos e cortantes que, em ocasiões de fuga, são lançados pelas quadrilhas nas rodovias, no intuito de perfurar pneus de viaturas.
Junto com o tráfico internacional de armas e, mais recentemente, sua obtenção legal e comercialização “informal” no Brasil, há outros robustos mercados ilegais, dando suporte às ações do “novo cangaço”, como o de roubos e furtos de veículos, de vendas de peças, blindagens e adulteração de placas automotivas, de produção e comércio de documentos falsificados, assim como de fabricação e venda clandestina de explosivos. Desde o fim dos anos 2000, dinamites têm sido utilizadas em assaltos contra instituições financeiras no país. Segundo narrativas de entrevistados, até meados dos anos 2010, as emulsões eram furtadas de empresas de construção civil ou ilicitamente obtidas em depósitos do Exército brasileiro. Com o aumento das demandas no mercado dos assaltos, teriam sido montadas fábricas ilegais de dinamites em todas as regiões do país, o que antes só ocorria nas proximidades de garimpos clandestinos, atividade que, desde meados da década de 1980, movimenta o mercado ilegal de explosivos. Mas o tratamento desse material requer expertise. Agentes ou ex-agentes das forças armadas, com formação técnica para seu manuseio, ou assaltantes treinados por esses agentes, os “explosivistas”, têm exercido protagonismo no “novo cangaço”. Sua expertise tem possibilitado a violação de cofres bancários e caixas eletrônicos. Na fase preparativa desses crimes, “explosivistas” definem quantidades de dinamite a ser utilizadas durante os ataques armados, estabelecem a disposição dos artefatos, sua distância das estruturas a ser colapsadas e o momento exato de efetuar as implosões. Mais que ações barulhentas e espalhafatosas, as investidas do “novo cangaço” são bem elaboradas, viabilizados por logísticas modernas e mão de obra tecnicamente qualificada. Trata-se de um incrementado mercado ilegal conectado a outros mercados ilegais e informais, com vastas redes de agentes, que se associam temporariamente para articular complexos planos de assaltos. Além das altas cifras que movimentam, as instituições financeiras são atraentes a assaltantes, sobretudo quando comparadas a outros alvos, pela liquidez de suas quantias. Depois de efetuados os roubos e furtos, seus executantes não precisam recorrer ao mercado ilegal das “receptações”, como ocorre com outras modalidades de alvos.
Recentemente, a Câmara Federal aprovou a tipificação das ocorrências do chamado “novo cangaço” como crime hediondo, imputando-lhe penas mais rígidas. Sem discutir mérito ou demérito jurídico dessa decisão, em se tratando de suas possibilidades de atuar para desmotivar estes crimes, não acredito que sejam suficientemente impactantes, nem que produzirão oscilações estatísticas nessas ocorrências. Nunca houve impunidade disseminada entre participantes de assaltos contra instituições financeiras, raramente encontra-se um que não tenha passagem pela prisão, tampouco as penalidades atribuídas a tais roubos e furtos podem ser consideradas leves. Além dos períodos de pena em regime fechado concernentes a esses crimes, que já são longos, quando se trata de alvos como bancos e empresas de guarda valores, são imputados a seus participantes agravantes penais como “porte ilegal de armas” e “formação de quadrilha”, dentre outros. Ademais, enrijecer sanções por um lado e facilitar a aquisição de armas no país, por outro, indicam a inaptidão do Estado em empreender ações minimamente coordenadas para o enfrentamento do chamado “novo cangaço”’, que tem persistido como desafio às políticas de Segurança Pública, no cenário nacional.
Se no contexto europeu e estadunidense os ataques armados a estabelecimentos financeiros sofreram notáveis quedas estatísticas nas últimas décadas, possibilitadas por reduções crescentes do uso de dinheiro em espécie por pessoas e empresas. No Brasil, embora tenha aumentado significativamente o uso de cartões e smartphones, as dificuldades enfrentadas nessa seara são maiores. A principal delas é a extensão e relevância da economia informal no país, assim como a exclusão de parcelas expressivas da população do sistema bancário, o que impõe o uso ainda massivo de cédulas, sobretudo no comércio de bens e serviços. Nos últimos anos, a instituição do sistema PIX pelo Banco Central tem permitido que grandes volumes de pagamentos e diversas outras operações bancárias sejam realizadas por smartphone, sem tarifas ou custos para usuários, conquistando a confiança e adesão crescente dos brasileiros, em suas transações financeiras cotidianas.
Além do incentivo ao uso de cartões e mecanismos digitais, o fator que efetivamente tem impactado nas estatísticas de assaltos contra bancos e empresas de guarda de valores no Brasil tem sido os investimentos dessas instituições em sistemas e tecnologias de segurança, destinadas a prevenir e inviabilizar furtos e roubos. Dentre as ferramentas de prevenção a assaltos, utilizadas por estabelecimentos financeiras no país, a que destrói ou inutiliza as cédulas, mediante o disparo de alarmes, é o dispositivo que parece mais promissor. Se as quantias subtraídas desses alvos não estiverem aptas à imediata circulação monetária, deixará de ser vantajoso e interessante às quadrilhas investirem dinheiro e competências na elaboração de sofisticados planos de roubos e furtos. Nos últimos anos, diversas ocorrências do chamado “novo cangaço” têm ganhado repercussão midiática, tanto pelo pânico e comoção social promovidos em cidades de pequeno e médio porte no país, como por enfrentamentos armados entre quadrilhas e equipes policiais locais, os quais resultaram em mortes de reféns, assaltantes e policiais. Tais episódios têm demonstrado, de modo dramático e dispendioso, que nessas ocasiões a pior estratégia no campo da Segurança Pública é disparar contra as quadrilhas sem planejamento, coordenação ou suporte adequado. Combinar tecnologias de prevenção a assaltos, com inteligência e investigação policial criteriosa tem se mostrado o melhor caminho para combater esses crimes.
JÂNIA PERLA DIÓGENES DE AQUINO - Professora da Universidade Federal do Ceará e pesquisadora do LEV (Laboratório de Estudos da Violência).