A existência das diferentes metodologias de aferição do esclarecimento de homicídios não deve ser vista como um problema, mas como um excelente caminho para o aperfeiçoamento da gestão e atuação orientada por resultados nas diferentes organizações do sistema de justiça e segurança pública.
A quinta edição do relatório “Onde mora a impunidade? Por que o Brasil precisa de um indicador nacional de esclarecimento de homicídios”, divulgada no início de agosto, apresentou a taxa de esclarecimento de homicídios para o Brasil e para 19 unidades da federação. Esse indicador é fruto da metodologia desenvolvida pelo Instituto Sou da Paz e publicada pela primeira vez em 2017, com o objetivo de criar um parâmetro nacional e enfrentar a impunidade de homicídios no país. Considera esclarecido o homicídio ocorrido num determinado ano e que tenha sido denunciado pelo Ministério Público até o final do ano seguinte. Neste quinto relatório, por exemplo, foram calculadas as taxas de esclarecimento para os homicídios ocorridos em 2019 e que tenham sido denunciados pelo MP até 31 de dezembro de 2020.
Essa escolha é fruto de análises de outras metodologias e considera que ter mais de uma instituição – a Polícia Civil e o Ministério Público – que compartilham o mesmo entendimento acerca da autoria e materialidade e compõem o conjunto acusatório da justiça criminal, permite mensurar com maior precisão a capacidade do Estado de identificar e responsabilizar os autores de homicídios.
Nesta última edição, o percentual de homicídios esclarecidos no país foi de 37%, contra 44% do ano anterior. Rondônia foi o estado que mais esclareceu homicídios ocorridos em 2019, com percentual de 90% de esclarecimento, seguido pelo Mato Grosso do Sul, com 86%, e Santa Catarina, com 78%. Na quarta edição, Mato Grosso do Sul já havia se destacado, com um percentual de 89%.
Fonte: Instituto Sou da Paz
É importante, destacar, no entanto, que as análises trazidas pelo relatório mostram muito mais do que o índice de esclarecimento. Revelam, por exemplo, se há melhora ou piora na capacidade dos Ministérios Públicos e Tribunais de Justiça estaduais produzirem e divulgarem informações de qualidade sobre sua própria atuação. Nesta quinta edição, dezenove estados enviaram dados completos para o cálculo do indicador, um avanço significativo no compartilhamento de informações, especialmente quando comparamos com a primeira edição do relatório, quando apenas seis enviaram dados. Esse aumento no número de estados que a cada ano enviam dados para o indicador precisa ser celebrado. Sem informações de qualidade não se faz política de segurança pública séria.
Fonte: Instituto Sou da Paz
Para além do sobe e desce pontual dos índices entre uma edição e outra entre os estados, outro destaque importante da análise é a possibilidade de olhar aqueles que vêm num movimento crescente de melhora em seu indicador, aqueles que estão estagnados ou mesmo os que vêm reduzindo ao longo dos anos. Outra dimensão importante, sobretudo quando é possível ir um pouco mais a fundo e conhecer especificidades locais, é analisar fatores que podem contribuir para esses movimentos. É o caso do Espírito Santo, que enviou dados em todas as edições, com melhora contínua em seu indicador. A elucidação de homicídios é acompanhada mensalmente pelo governador no âmbito do Programa Estado Presente, ainda que seu cálculo siga uma metodologia diferente. Essa centralidade no âmbito da política de segurança dada ao indicador pode ajudar a explicar o movimento crescente no indicador do ES. Outro caso de destaque é a Paraíba, foco de análise específica nesta quinta edição, já que possui uma metodologia própria de mensuração do esclarecimento de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI), publicada anualmente pela Secretaria de Segurança Pública.
Por fim, é importante destacar que, desde sua origem, esse trabalho tem sido um esforço de trazer ao debate público a importância de se enfrentar a impunidade dos homicídios, garantir verdade e justiça aos familiares e criar um parâmetro nacional de esclarecimento desses crimes, tema até então pouco debatido. Desde a sua primeira edição, com dados de homicídios de 2015, a publicação tem também gerado intenso e necessário debate entre e com as Polícias Civis do Brasil, inspirado movimentos nos Ministérios Públicos e nas Polícias Civis estaduais para o cálculo do esclarecimento de homicídios, além de jogar luz na necessidade de investimento nos diferentes atores na cadeia de investigação e esclarecimento de homicídios, particularmente nas Polícias Civis.
Há críticas à metodologia utilizada pelo Instituto Sou da Paz, como, por exemplo, eventuais situações que podem fazer com que a conclusão bem-sucedida de um inquérito policial não se reflita no número de denúncias do MP. É o caso, por exemplo, da identificação de autoria envolvendo pessoas menores de 18 anos ou pessoas que já estão mortas no momento da conclusão do inquérito. Assim, seria muito importante que, em conjunto com as críticas, essas instituições publicassem o montante que abarca cada uma dessas situações, para que se possa ter ideia do quanto esses casos afetam o indicador. Atualmente apenas três estados calculam indicadores de esclarecimento de mortes letais intencionais, e publicam ativamente e de forma regular sua metodologia de mensuração e seus indicadores de esclarecimento – a Paraíba, o Rio de Janeiro e Minas Gerais. A existência das diferentes metodologias de aferição do esclarecimento de homicídios não deve ser vista como um problema, mas como um excelente caminho para o aperfeiçoamento da gestão e atuação orientada por resultados nas diferentes organizações do sistema de justiça e segurança pública. Assim como acontece com os dados sobre homicídios do DATASUS e aqueles produzidos pelas secretarias estaduais de Segurança, vistos como complementares para a compreensão do fenômeno.
Jogar luz à necessária priorização do esclarecimento de homicídios é medida necessária ao Brasil, sobretudo se quisermos efetivamente reduzir a injustiça dessas mortes que estão concentradas majoritariamente na população masculina, jovem e negra em nosso país.
CAROLINA RICARDO - Advogada e socióloga. Mestre em Filosofia do Direito pela USP. Diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.