SAÚDE MENOS ARMAS
MIRANDO O ABISMO: violência letal e saúde mental de brasileiros armados
A violência extremada que amedronta alguns indivíduos, ao que parece, excita outros a se lançarem ao encontro do incerto sob a sensação de sobrenatural coragem, animada por forte emoção e descargas hormonais.
30/08/2022 11h53
Por: Carlos Nascimento

Os números do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apresentam um cenário favorável no Brasil, que informa a queda da letalidade e da vitimização policial no ano de 2021. A letalidade caiu 4,9% em relação ao ano anterior. O menor patamar em quatro anos. Não obstante, o número de pessoas mortas por policiais civis e militares permanece elevado, mormente o de jovens negros (99,2% das vítimas). A letalidade das polícias brasileiras abrange 12,9% das mortes violentas intencionais do país e totaliza 6.145 mortes, o que corresponde à média de 17 mortes por dia causadas por policiais. Seguindo a mesma tendência de queda, o número de policiais assassinados sofreu redução em 17%. Foram 183 registros no ano, contra 221 em 2020. A maioria das mortes ocorreu fora do serviço (77,4%).

Em oposição aos dados alvissareiros, o suicídio de policiais, tanto civis quanto militares, cresceu 55,4%. Os dados se referem somente a policiais da ativa. Em 2021, 80 policiais militares e 21 policiais civis cometeram suicídio. Nesse mesmo ano, 34 policiais militares e 9 policiais civis morreram em serviço. Ou seja, em 2021 mais policiais se suicidaram do que foram a óbito em confronto, no policiamento.

No amontoado das cifras lúgubres, resta evidente que a segurança pública no Brasil vive um drama silencioso: a saúde mental dos policiais.

Faz poucas semanas (14 e 15.07.2022), um policial militar cometeu a chacina que matou nove pessoas, nas cidades de Toledo e Céu Azul, no oeste do Paraná, ao que tudo indica motivada pelo fim do relacionamento conjugal. Entre os mortos: a esposa e a filha do primeiro relacionamento, uma adolescente de 12 anos; a mãe e o próprio irmão; na casa dos avós maternos, a filha e o filho, a menina tinha 8 e o menino 4 anos; 2 jovens desconhecidos que caminhavam pela rua, um de 16 e outro de 19 anos. Depois das execuções, enviou um áudio pedindo desculpas para o que restou da família e cometeu suicídio. Algoz e vítima.

A arma de fogo utilizada na chacina pertence à Polícia Militar do Paraná (PMPR), na qual ele trabalhava havia 12 anos. Conceituado por superiores como excelente profissional, exercia função de confiança. O pronunciamento oficial da PMPR comunica: “O policial militar que prestava serviços no 19º Batalhão em Toledo não tinha histórico que pudesse indicar problemas psicológicos e atuava como motorista do Coordenador do Policiamento da Unidade”.

Decerto que o trabalho com a violência exige do policial habilidade, sorte e um permanente estado de alerta primordial para que se mantenha vivo nas ruas. Wilquerson Sandes observa que, no exercício da atividade de policiamento, os policiais – em sua maioria profissionais competentes e cumpridores da lei – precisam estar sempre prontos para sobreviver ao ataque de um agressor, ao tormento dos processos administrativos e judiciais e a conviver com os traumas psicológicos decorrentes do dia a dia.

O preocupante é pensar que, na PMPR, apesar de contar com o serviço de apoio psicossocial, não se notou qualquer indicativo de problemas psicológicos que possibilitasse antever e evitar a violência bestial.

À parte do que sucedeu no Paraná, é irrefutável que existam nas fileiras das organizações policiais indivíduos com inclinação homicida, que encontram na própria corporação e em parcela da população amedrontada pela criminalidade o apoio e a condescendência que necessitam para dar vazão a sanha mortal, no exercício do necropoder.

Diferente dos suicídios, a proeminência da letalidade recidiva de alguns policiais não é logo associada ao adoecimento mental, ainda que por vezes denote traços do que os psicólogos chamam na literatura clínica de “tríade obscura” (maquiavelismo, narcisismo e psicopatia). Ao avesso, no Brasil, policiais capazes de matar são tidos como valentes e detentores de elevado prestígio social, dentro e fora da caserna.

Vale ressaltar que as forças policiais aplicam testes psicotécnicos que auxiliam os processos seletivos. Primam pela formação profissional. Seguem a hierarquia de comando. Estabelecem normas disciplinares e procedimentos-padrão para orientar as condutas. Contam com serviços de apoio psicossocial. Ademais, corregedorias, ouvidorias e promotorias de Justiça vigiam o uso da força. Enfim, o comportamento abusivo do policial, quando identificado, é punido administrativamente ou na esfera penal.

Não bastasse a complexidade da violência letal que abarca os policiais, mais e mais brasileiros estão tendo acesso a armas de fogo – o contingente de colecionadores de armas, atiradores profissionais e caçadores (CAC) que cresceu expressivamente no Brasil, na gestão do presidente Jair Bolsonaro.

Atualmente, o número de pessoas cadastradas como CAC já supera o total de policiais militares (406 mil) e de integrantes das forças armadas (360 mil), em todo o país. São 2,8 milhões de armas registradas de particulares. Outras 692,5 mil armas pertencem a cidadãos comuns com autorização para posse ou porte. Clubes de tiro cresceram exponencialmente em todos os estados, muitos com forte inspiração nacionalista e alinhamento político ao atual presidente, armamentista, candidato à reeleição. Entendem que o uso da força, isto é, da arma de fogo, é o melhor mecanismo de defesa da vida, da liberdade e do patrimônio.

Mas, se no cotidiano uso da arma de fogo, os nossos policiais estão entre os agentes da lei que mais matam, que mais morrem e que mais se matam, apesar de refreados por mecanismos de controle social consolidados e de contarem com estruturas de apoio psicossocial à disposição, o que esperar, então, das relações interpessoais da legião armada que cresceu prevalecida do abrandamento da lei e do afrouxamento dos pré-requisitos psicológicos?

Em boa parte, são pretensos cidadãos de bem – nem todos – armados, treinados, mas ideologicamente aparelhados e de preparo emocional incerto, ansiosos para “cancelar CPF” na sonhada limpeza social. A violência extremada que amedronta alguns indivíduos, ao que parece, excita outros a se lançarem ao encontro do incerto sob a sensação de sobrenatural coragem, animada por forte emoção e descargas hormonais. Mais fundo o precipício, maior a emoção.

Os apaixonados por armas bem sabem que os homens criam a ferramenta letal e a arma de fogo recria os homens, transformando-os em maiores, mais fortes e valentes; talvez seja esse o motivo do encanto. Porém, conforme já se viu, há outros efeitos, deletérios.

Das tensões e inquietações corriqueiras da vida hodierna em nossa sociedade – particularmente marcada pelo imenso legado de perniciosa iniquidade – latejam assassinatos e baleamentos em brigas de trânsito, em  discussões familiares ou no manuseio inadequado da arma de fogo por crianças e adultos.

O gênio literário russo Fiódor Dostoiévski, revolvendo a profundidade da alma humana na obra-prima da sua narrativa fantástica “A dócil” (1876), escreveu: “Dizem que aqueles que estão nas alturas como que são atraídos por si mesmos para baixo, para o abismo. Creio que muitos suicídios e homicídios só foram levados a cabo porque o revólver já estava na mão. Aqui também há um abismo, aqui também há um declive de quarenta e cinco graus, do qual é impossível não escorregar, e algo incita irresistivelmente a puxar o gatilho.”

O abismo parece ainda mais íngreme frente ao pleito eleitoral que se aproxima e dos interesses e afetos que ele arregimenta. Melhor seria menos armas e mais espíritos desarmados.

SANDOVAL BITTENCOURT DE OLIVEIRA NETO - Coronel da reserva (PMPA), doutor em Sociologia (UnB), membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.