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"O Brasil tem que se livrar da política dentro das Forças Armadas para evitar a radicalização", diz cientista político alemão

Carlo Masala ressalta a tendência das tropas de sofrerem influência da extrema-direita. Utiliza como exemplo a ser seguido o caso da Alemanha que, após a Segunda Guerra, foi obrigada pelos aliados despolitizar as forças militares como forma de evitar o ressurgimento do nazismo.

Carlos Nascimento
Por: Carlos Nascimento Fonte: Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima
20/01/2021 às 13h13

O cientista político Carlo Masala costuma expressar opiniões fortes a respeito da politização das forças armadas e do aparato policial, que tende a direcioná-los à influência da ultradireita. Natural de Colônia, na Alemanha, Masala ressalta que em seu país o tema é tratado com muita seriedade. Os alemães, segundo ele, foram levados a reforçar a neutralidade do braço armado do Estado por uma consequência da Segunda Guerra Mundial. Os vencedores do conflito – União Soviética, Estados Unidos, Inglaterra e França – assumiram a determinação de impedir a repetição do fenômeno que deu origem ao nazismo.

Masala é professor titular da cadeira de Política Internacional na Universidade da Bundeswehr Munique, em Neubiberg. Ele estudou Ciências Políticas, Filologia Alemã e Românica nas Universidades de Colônia e Bonn. Em 1996, recebeu seu doutorado com uma tese sobre as relações germano-italianas no período de 1963-1969 e, em dezembro de 2002, alcançou a livre-docência em ciência política.

Após um período no Instituto Geschwister-Scholl da Universidade Ludwig Maximilian de Munique, ele se mudou para o Colégio de Defesa da OTAN em Roma, onde chegou ao cargo de diretor-adjunto no departamento de pesquisa. Desde 2007, ocupa a cátedra de Política Internacional na Universidade das Forças Armadas Federais de Munique. Nos últimos dez anos também atuou como professor convidado nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Eslováquia, Itália e Chipre.

Carlo Masala participou do 14º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizado virtualmente entre os dias 7 e 11 de dezembro de 2020. Ele concedeu a entrevista abaixo ao diretor-presidente do FBSP, Renato Sérgio de Lima, e à diretora-executiva da instituição, Samira Bueno, na qual debateu a radicalização entre policiais e militares, as relações civis-militares e como as forças armadas se organizam internamente, entre outros temas. Veja abaixo os principais pontos da entrevista.

Pergunta - Uma questão que para nós é muito forte aqui no Brasil atualmente, mas que também ganhou corpo na Alemanha, é o enfrentamento de oficiais das polícias em processos de radicalização, que também está relacionado com as Forças Armadas. De que forma essas suas novas preocupações acerca da relação dos militares com civis e, onde é possível pensar uma reflexão sobre as polícias, refletem o cenário geopolítico mundial?  

Resposta - O que eu sei sobre as Forças Armadas brasileiras é que elas, historicamente, têm uma vida própria e há poucas conexões com a sociedade em geral. As similaridades com outros lugares aparecem também. Nós temos um problema não no Bundeswehr (Forças Armadas Alemãs), mas em unidades específicas, com uma radicalização de extrema-direita tanto nos oficiais quanto nos graus mais baixos. Houve escândalos nos últimos dois anos entre as nossas forças especiais de operações. Mas por que isso aconteceu? Uma das razões é que esse tipo de unidade opera, claro, de maneira muito secreta. Ou seja, a população alemã não sabe nada das operações das unidades especiais. A segunda razão é que a unidade em si, que tem mais ou menos mil soldados, 400 comandos e 100 soldados em suporte, é separada das demais unidades do Bundeswehr. Eles têm sua base especial e são retirados do cotidiano. Na Força Aérea, você é colocado três anos em uma unidade, depois te colocam em um outro posto, em algum outro lugar, em outra unidade na Alemanha. Esses soldados ficam lá durante 20, 25 anos, e acabam desenvolvendo uma vida própria. Há uma combinação de um grande estresse, porque tem um fato de estresse, porque são operações especiais. Tem que estar pronto para a ação 24 horas em 7 dias por semana. Entre eles, predomina um forte espírito de equipe, esprit de corps. Ao mesmo tempo, a tropa não tem contato com o resto das unidades, porque são unidades especiais por definição. Nós temos essas unidades desde, mais ou menos, 1992, quando foram implementadas, mas não houve controle a partir do lado de fora. Oficialmente, claro, tem uma linha de controle, mas não se executava bem no caso deles. Eles recrutavam e treinam seus próprios integrantes e ficam junto deles o tempo todo. Com isso, desenvolveu-se um espírito de equipe talvez até exagerado - mais desconectado do resto das Forças Armadas Alemãs e, por causa das suas tarefas, desconectados do público também. Se nós mandássemos outras equipes para o exterior, por exemplo, haveria necessidade de reportar o que eles estão fazendo. A mídia iria entrar lá e faria inventários, levantamentos, enfim, esse tipo de intercâmbio entre a população alemã e os soldados que estão empregados na Força Armada Alemã no exterior. Mas não acontece nada disso com as forças especiais. Então, eles podem sair do controle e ninguém fica sabendo. Nós tivemos também alguns escândalos de radicalização já há um no ano e meio, entre as forças policiais também. Mas o espírito de equipe dessas unidades especiais proíbe qualquer divulgação entre seus integrantes e, basicamente, a própria unidade cuida do assunto. Ou seja, quando há uma investigação externa, todos estão absolutamente aglutinados e, no final das contas, parece que não aconteceu absolutamente nada ou foi uma exceção, uma pessoa que ficou louca e fez alguma bobagem, em termos de radicalização de extrema-direita. Precisou que o Ministério da Defesa tomasse medidas duras, mas isso ainda está em processo, e temos que ver o que vai resultar desse endurecimento de regras. Vamos ver nos próximos meses o que acontece. Basicamente, se teve que criar uma unidade dentro dessa unidade para fazer a declaração de que isso não é tolerável. Como eu disse, há 400 soldados de comando, que estão em quatro unidades, e o restante da tropa subordinada a esses comandantes. A mudança colocou uma unidade de 72 pessoas em uma unidade das forças especiais onde houve muito mais radicalização para a extrema-direita. A unidade inteira em questão, mil pessoas, ficou sob uma condicional.

A mensagem passada à tropa é de que, se vocês não nos ajudarem a passar por todo o processo de investigação externa, vocês vão se tornar uma ameaça, na realidade. As pessoas vão querer saber agora o que aconteceu dentro das forças especiais nos últimos tempos. O que eu quero dizer é que esse tipo de espírito de equipe é mais ou menos que você está operando secretamente, e não tem tanto contato com a sociedade em geral e os mecanismos de controle falham.

P - Para nós podermos avançar, só um complemento. Em sua opinião, de que modo as tarefas desses grupos estão ou não conectadas com a realidade geopolítica, que vê mais riscos internos do que externos. Ou seja, nesse processo, como é que as unidades especiais poderiam tanto influenciar a agenda das outras unidades como, na verdade, se colocar no diálogo com essas outras unidades. Por que as forças especiais, se o inimigo é interno, terão que dialogar, por exemplo com as polícias? Como é que poderíamos pensar um pouco essa relação dentro do próprio país?

R - No caso alemão é diferente porque, pela Constituição, as Forças Armadas não podem atuar domesticamente. Este tipo de unidades especiais não tem nenhum papel dentro da Alemanha. Elas são mandadas ao exterior para pegar e caçar terroristas, mas não internamente. Assim, eles não têm nenhuma comunicação, nem sequer um treinamento em comum, com as Forças Armadas. Em eventos catastróficos, outras instituições podem pedir ajuda a eles, mas são instituições que estão lá no comando. Por exemplo, nós temos outros oficiais que estão procurando a Covid, mas não há pessoas suficientes. Estão pedindo para as operações especiais ajudarem, então são mandados a campo. As operações especiais estão indo se juntar a forças, ajudando a medicina. Outras instituições federais estão pedindo ajuda, mas não há um papel próprio das operações especiais dentro da Alemanha. Por isso, não existe nenhuma missão de luta e nunca será empregada nenhuma força de luta das forças especiais internamente. Temos uma polícia para isso que, aí sim, cuida do terrorismo interno, por exemplo, como ameaça. É por isso que não há conexão entre as operações especiais nas Forças Armadas Alemãs e quaisquer outras unidades especiais, que sejam da polícia própria. Mas descobrimos que nós temos ou tivemos, atualmente estão sob investigação, algum tipo de organizações de ex-oficiais de polícia e ex-soldados ou servidores das forças especiais. Por que eu menciono esses ex? Porque eles são treinados à mesma maneira. São organizações privadas, na realidade, que usam ex-integrantes das operações especiais junto com os ativos e também ex-policiais e policiais ativos. Esse tipo de rede de pessoas radicalizadas, principalmente através de chats de internet, ainda não executou nenhuma ação. Mas existe esse tipo de rede entre as forças armadas operacionais e também de soldados ativos, não só ativos. Estão, aparentemente, conversando, mas sabemos que algumas dessas conversas e o conteúdo disso, desse chats, é uma preparação para uma guerra civil na Alemanha, que todos esperam que aconteça devido aos eventos de 2015, que levaram a mais de 1,5 milhão de refugiados ao nosso solo. E também do terrorismo do Estado Islâmico, que perpetrou ataques dentro do solo alemão e traz cada vez mais radicalizações na comunidade islâmica. Começam a falar do dia X e como se preparar para o dia X, porque cedo ou tarde haverá guerra civil e eles tem de exercer o comando, por causa do seu treinamento especial. Ainda não aconteceu. Interessante, não é? Algumas dessas forças policiais ou operações especiais roubaram munições e armas das unidades de operações especiais. Então o grande escândalo apareceu, porque a polícia entrou dentro da casa de ume soldado da extrema-direita e começou a cavar o jardim. Encontraram explosivos, munições e armas. Todas retiradas nos últimos anos das unidades de operações especiais, em uma escala pequena. Mas vocês percebem como está o problema. Se não tivéssemos descoberto esse tipo de comportamento, seja na força policial ou nas forças armadas alemãs, ninguém sabe quantas munições, explosivos, pudessem capturar, roubar, enfim, nos próximos três ou quatro anos. O que eles seriam capazes de roubar se ninguém tivesse investigado.

P - No Brasil, nós temos um processo, uma simbiose muito grande, entre as polícias militares e as Forças Armadas. Embora as polícias, em teoria, sejam essa organização que vai fazer a segurança no âmbito doméstico e as Forças Armadas, em teoria, para fora, as polícias militares são força auxiliar e reserva do Exército. Isso está na Constituição. Então, existe ali uma simbiose muito forte entre esses dois atores. Por isso é tão importante para nós escutar sobre as forças armadas alemãs e essa separação entre política e o trabalho da segurança nacional. Acho que um desafio que temos hoje no Brasil tem a ver com um processo de politização tanto das Forças Armadas quanto das polícias. Quando eu falo de politização, estou falando de membros, soldados, generais, funcionários, tanto das polícias quanto das Forças Armadas, que passam para a política, se candidatam e acabam sendo eleitos. Hoje temos no Brasil cerca de um milhão de policiais civis e militares e outros cinco milhões aposentados. É um número muito significativo. O atual presidente, como você bem sabe, é um capitão reformado do Exército. Hoje, nas eleições municipais, temos 7,2 mil candidatos que são vinculados às forças policiais e às Forças Armadas. Não existem regras de transição para esse policial ou para esse membro das Forças Armadas para ingressar na política. Hoje ele pode se candidatar e, se não for eleito, ele volta para o seu cargo de origem. Volta a ser policial e continua com a estabilidade funcional, continua com o seu salário garantido. É muito difícil separar a política da polícia e das Forças Armadas na medida em que é tão simples migrar de uma carreira para outra. Queria uma avaliação sua desse cenário à luz das regras que existem na Alemanha. Existem regras para essa transição do universo policial e das Forças Armadas para a política?

R - Sim. Eu tenho que começar falando uma coisa que provavelmente não é muito legal, não é muito bacana sobre o Brasil. Algumas semanas atrás eu fui convidado, eu não lembro por qual organização. Foi um ex-general, também acadêmico. Estávamos conversando sobre as Forças Armadas e o conceito que temos de separação na Alemanha.  A minha sensação com esse general era que... deixe-me colocar de outra maneira. Primeiro, as Forças Armadas Brasileiras, já há muito tempo não são usadas para serem empregadas em algum outro país. Então, a tarefa principal delas é interna, o que é estranho. Porque, para assuntos internos, você teria a polícia. As Forças Armadas cuidam das fronteiras e não deveriam ser usadas para, seja qual for, a disputa interna que possa existir. Em segundo lugar, é um sistema fechado. Em terceiro lugar, e agora sim nós entramos na tal da política relacionada às Forças Armadas, eu já sabia disso antes, mas fiquei muito chocado com os comentários desse general quando ele disse que nós, Forças Armadas, queremos esse tipo de sistema, esse tipo de economia, esse tipo de sociedade. Não queremos experimentos, não, disse ele. Então aí começaram as diferenças. Na Alemanha, todo soldado tem o direito de ter a sua opinião política, claro. Mas ele não é autorizado a fazer lobby para isso dentro das unidades. Ele não pode fazer propaganda política lá dentro. Tem um tipo de, digamos, neutralidade. Você pode pensar o que quiser sobre sócio-política, os partidos políticos, seja lá o que for. Mas você não pode, dentro das unidades militares, oficialmente, falar a respeito disso e influir sobre as outras pessoas, especialmente na relação de superiores à subordinados. Nas Forças Armadas, não são permitidas manifestações sobre como o sistema político deveria ser ou como a economia da Alemanha deveria ser. Não tem nada disso. Não é tarefa deles, eles não deveriam ligar nada para isso. Todo indivíduo tem o direito de pensar a respeito e comentar mas, como organização, tem de ser politicamente neutra. Nós temos, desde 2017, um partido de extrema-direita no Bundenstag (Parlamento alemão). Eles vieram bem fortes, são o maior partido de oposição em termos de assentos no Congresso e porcentagem de favorecimento nas eleições. Eles tentam influir dentro do Bundenstag e dizem que, porque alguns ex-soldados são membros do Parlamento, eles podem se apresentar como tal dentro do Parlamento. Temos um general de duas estrelas que, em uma reunião privada - privada hein!- disse que, de maneira alguma, votaria neste partido. Isso basicamente foi relatado ao partido e eles pediram ao Ministério que começasse uma investigação formal porque ele violou a lei da neutralidade política do Exército. Então, se esse general tivesse dito isso em uma atividade oficial dentro de um ambiente, um cenário oficial, eles teriam tido razão em chamar atenção, porque não pode fazer isso, não é permitido. Mesmo que você esteja completamente em desacordo com o partido, em um cenário oficial ele, como general, dizer aos seus subordinados que você não recomendaria que votasse ou deixasse de votar nesse partido... Pode ser privadamente, mas não em um lugar oficial. A grande diferença entre as Forças Armadas brasileiras e as alemãs é que elas não têm essa diferença. Nós temos uma história, das nossas Forças Armadas na República de Weimar, e temos também a opinião pública. Basicamente, eles foram responsáveis pelo surgimento do nazismo. Boa parte dos oficiais deram apoio aos nazistas. A coisa histórica aqui vem como uma espécie de um escoramento desta diferença. Enquanto o sistema democrático não for ameaçado, eles podem ter as suas opiniões particulares. Agora, nós temos o direito, nas Forças Armadas, de obediência para todos os soldados, mas que também significa: se você tiver recebido uma ordem que viola as leis internas ou externas, você tem o direito de recusar seguir essa ordem. As forças alemãs em si, tem que ser neutras, politicamente. Tanto os políticos quanto a sociedade são muito afoitos à essa ética, essa lei. Nós temos ex-oficiais que estão em parlamentos, tanto locais quanto federal. Mas é muito diferente dos números que você mencionou do Brasil. Como eles se organizam? Se você for aposentado, pode fazer o que você quiser da vida. Pode ser coronel, pode ser candidato a qualquer partido e ser eleito. Ele é um aposentado. Mas, se estiver na ativa, tem que parar no dia que começar sua campanha eleitoral. Uma vez que você for eleito oficialmente, você não sai das Forças Armadas, mas entra em um período de licença de cinco anos. Mas se você for eleito uma segunda vez, aí tem que pedir demissão das Forças Armadas. Não temos isso tanto em nível nacional no Parlamento, isso é mais local. Todos aqueles ex-forças armadas que se elegeram, se olharmos historicamente, a minoria deles tem alguma coisa a ver com segurança e defesa no Parlamento. Eles fazem as coisas normais de qualquer político. Alguns entram em política de saúde, outros em política familiar.

Agora, diferente do seu governo aqui, atual, no Brasil, eu não consigo me lembrar de que jamais tenhamos tido um ex-forças armadas como ministro. Nunca. Talvez tenha havido um ou outro durante todos esses anos, mas olhando desde 1949, desde a primeira eleição na República Federativa Alemã. O que aconteceu com o governo Bolsonaro, basicamente, com muitos generais que entraram e tomaram ministérios, nunca tivemos isso na Alemanha. Nunca, em 70 anos.

P - Nós temos até um general à frente do Ministério da Saúde, que não é médico, no meio de uma pandemia.

R - Eu sei, eu sei. Eu não sei muito sobre o Brasil e as dinâmicas políticas do Brasil, mas eu comparo isto à administração Trump nos EUA. Quer dizer, o Trump teve muitos erros sim, mas um erro que ele fez é que ele pensou que se tivesse vários generais no governo, eles iriam tocar a administração de um jeito legal. E como eles eram generais, iam obedecer a qualquer ordem presidencial. Ele estava errado nos dois pontos. Porque, em primeiro lugar, nos EUA é bem óbvio, mesmo historicamente, não só na administração do Trump. Se você for um general, sim, claro, no princípio de comando e obediência, você pode ter uma grande unidade militar. Agora, quando você pega um ministério, tem que mexer civis. E os civis pensam e agem de maneira diferente. Então, se você não aparece lá no emprego e fala o céu está brilhante, está azul, o ministro fala que está azul o céu hoje, vai ter pelo menos 10% dizendo que não, que o dia não está azul. Está lá o sol, amarelo. O general não está acostumado a esse tipo de coisa. Então, ele é o perfeito gerente de uma unidade militar, mas não necessariamente de um ministério. O que o Trump descobriu, também, no fim, é que a maior parte desses generais tinha suas próprias opiniões. Uma vez que eles estavam no governo, não estavam apenas recebendo ordens do chefe, mas eles podiam de repente criticar seu chefe publicamente. O Trump tinha 15 generais nos primeiros dois anos e despediu todos. Percebeu que sempre que dizia alguma coisa aos generais eles não iam obedecer. Necessariamente, um general não é um bom ministro por natureza. Essa é a realidade.

P - É até interessante porque, se nós olharmos esse perfil da gestão Trump, que de fato é muito parecida com a gestão Bolsonaro aqui no Brasil, ela tem se tornado um padrão de atuação da ultradireita no mundo. Se pensarmos assim, esse é um dos dilemas enfrentados pela Alemanha hoje, porque também há ascensão, o crescimento da força, por exemplo, do AFG, que se dá exatamente porque coloca um desafio prático de como lidar com a radicalização e a polarização como instrumento de poder, como forma de administração. O que é muito bem feito pelo Trump. Ele sendo reeleito ou não, a força política dele mostra-se muito grande. Ou seja, não é algo que entrará facilmente em declínio, muito pelo contrário. Mas também percebemos a forma de atuação na Hungria, na Polônia, nas Filipinas, na Turquia e assim por diante. Dentro desse contexto, na própria Índia também que é um país muito grande e com tensões, ou seja, líderes políticos de extrema-direita tentando fazer uma confusão entre órgãos de Estado, como Forças Armadas e polícias com sua administração. Ou seja, quase como um retorno à ideia do absolutismo monárquico, “o Estado sou eu”, o rei. Como a União Europeia está lidando com essas questões de se garantir a separação entre Forças Armadas e poder civil e os desafios postos pelo movimento de populismo de ultradireita? É muito difícil conter essa politização, à medida em que eles estão utilizando dos instrumentos da democracia para chegar lá. Como lidar com esse paradoxo?

R - Eu acho que há duas formas de atacar essa questão. A primeira é muito difícil. Eu acredito que líderes fortes, para conduzir a situação de maneira neutra, apelam às Forças Armadas e às unidades de polícia. E isso tem a ver com a negligência de décadas da força policial em si, do poder disso. Na União Europeia, depois de 1999, por exemplo, e do aparecimento dos estados europeus, as Forças Armadas não foram dissolvidas, mas foram maltratadas em termos de como eram equipadas, como eram treinadas, quanto dinheiro ganhavam. Todas as Forças Armadas, em toda a Europa, têm grandes problemas em relação ao equipamento que eles têm disponível para uso. Você sabe que todo mundo está satisfeito no trabalho quando consegue fazê-lo 100% bem feito. Com as Forças Armadas isso não é possível, porque quando se precisa de equipamento militar, ele não está disponível, está quebrado, é velho. Então, as sociedades e os políticos têm tratado as Forças Armadas de maneira ruim para elas. Na Alemanha, por exemplo, eu não sei quantos cortes já foram feitos nas polícias regionais nas duas últimas décadas. Os oficiais de polícia, hoje em dia, são mal pagos e sobrecarregados de trabalho. E também enfrentam, digamos, uma reputação pública ruim, são mal vistos. Essas são pessoas que fizeram juramentos, um voto de defender a Constituição sempre, seja domesticamente, como forças policiais, ou basicamente fora do país, como Forças Armadas. Esses instrumentos de poder têm sido negligenciados durante anos. Aí chega um cara forte, um político forte e promete a eles que ele vai devolvê-los ao centro da sociedade, da atenção da sociedade. Claro que isso é um bom apelo. Então, o que temos que fazer, basicamente, é equipar bem, conversar de uma maneira positiva. E, se alguma coisa sair errada, eles também devem ser punidos para que haja um sistema democrático que controle esse tipo de atividade. De maneira que a corrupção e mau comportamento sejam punidos. É isso que eles fazem. Isso ajuda muito, porque é aquele soldado ou aquela policial, aquele policial, por definição, que têm a tendência para entrar para o extremismo de direita. Eles podem ser muito seduzidos devido às circunstâncias nas quais cumprem seu dever. Agora, a segunda coisa é que nós temos que prevenir. Há casos, principalmente na Europa Oriental, antiga União Soviética, em que não há controle total da democracia, dos poderes democráticos sobre as Forças Armadas. É muito mais do que ter um civil como Ministro da Defesa, quer dizer, parece que isso aí significa controle civil sobre as Forças Armadas. Mas é preciso muito mais, uma vigilância parlamentar sobre as Forças Armadas. É, também, a observação da mídia sobre as tropas. Mas tem também o dar direitos civis dentro das Forças Armadas para os soldados e oficiais. Isso impede que eles sejam seduzidos por governantes fortes, monárquicos, despóticos. Portanto, assim você cria muito mais resiliência entre os indivíduos - homens policiais, mulheres policiais, soldados - em relação às tentações de soluções extremamente simples ou simplistas ou até problemas complexos. Soluções simples que eles tomam, por exemplo, é a radicalização de direita. Esses são blocos de construção, digamos, para que haja grupos sociais que apoiem esses governantes fortes. Geralmente são da direita, mas pode ser da esquerda também. Não tem muitas pessoas fortes dentro das Forças Armadas que sejam de esquerda, hoje em dia, em qualquer um dos países que conseguimos observar. Essa seria a minha resposta.

Esses são blocos de construção, digamos, para que haja grupos sociais que apoiem esses governantes fortes. Geralmente são da direita, mas pode ser da esquerda também. Não tem muitas pessoas fortes dentro das Forças Armadas que sejam de esquerda, hoje em dia, em qualquer um dos países que conseguimos observar. Essa seria a minha resposta.

P - De uma forma bastante objetiva, diante dessa realidade, quem controla as forças de segurança na prática, já que temos todas essas questões de cultura organizacional a ser implantadas?

R - Eu posso falar só do sistema alemão. Existe um controle parlamentar das Forças Armadas, estrito. Claro que também existe o controle do Ministério, lógico. A maior parte dos escândalos foram desvendados pela mídia, porque a mídia fica ligada em tudo que está acontecendo na Alemanha. É muito difícil esconder coisas hoje em dia, até porque no Parlamento nós temos o Comitê de Defesa. Ele faz muito mais do que simplesmente alocar o orçamento para as Forças Armadas. O Comitê controla as instituições militares no sentido de que, por exemplo, eles têm o direito de investigar. Se o Comitê quer ver ou ouvir algum rumor, seja lá o que for, ouvir algum general, um ministro de defesa, enfim, e questioná-lo sobre o que está acontecendo, eles têm que aparecer dentro de uma CPI. Se houve mau comportamento, esse é o único comitê na Alemanha que pode transformar-se em um corpo investigativo. Sempre que você aparece de frente a um comitê investigativo, você tem que responder. Não pode dizer que não quer responder, que não tem permissão para responder, que não pode falar sobre isso. Eles têm a função como se fosse uma procuradora pública, uma PGR. Então temos, digamos, o centro de queixas, com sua própria estrutura e burocracia. Eu acho que mais de 80 pessoas fazem parte da equipe dela. Isso é muito importante. Cada militar, independentemente do seu posto, tem o direito de escrever diretamente para essa pessoa, que é obrigada a investigar, seja lá o que cair na mesa dela. Isso significa que esse sistema de reclamações não fica só para as Forças Armadas. Às vezes, um soldado reclama e enfim. Soldados podem escrever diretamente para ela. É uma mulher, no caso. Pode escrever para ela e o seu staff burocrático, o seu escritório, tem que investigar tudo que aparecer. Basicamente ela pode se reportar diretamente ao ministério, e o ministério tem que tomar conta das coisas, de maneira que tudo volte ao normal. Essa instituição contribui para que se descubram os comportamentos de extrema-direita dentro das unidades das Forças Armadas, porque, antigamente, os investigados se reportavam aos seus superiores, mas os superiores não queriam lidar com isso. Além do mais, geraria mídia, geraria opinião. Então, agora você não faz mais isso. Não sei aonde isso vai terminar, mas temos o mesmo tipo de discussão em relação à polícia. A polícia precisa exatamente desse tipo de controle ou de estrutura, que será fora da polícia e não tem nada a ver com a polícia, mas que pode ser utilizada pelos oficiais de polícia também como cidadãos quando as polícias estiverem se comportando de forma errada. Para, basicamente, investigar os maus comportamentos da polícia, seja interna ou o comportamento externo da polícia com os cidadãos. Nem todo sistema é perfeito, mas você tem mais referências a quem pode se reportar. Para, ao invés de ter um sistema muito fechado, de estrutura fechada com o espírito de equipe muito tenso, muito apertado ali e fechado a qualquer controle.

P - Isso é bem interessante e, falando um pouco de Brasil, mostra como é importante o Parlamento se engajar na agenda das relações civis-militares e nas atividades. No nosso caso, por mais que tenhamos um controle formal, inclusive com obrigatoriedade legal de apresentar, a cada ciclo, um plano de defesa, isso é praticamente um ato burocrático, porque o Parlamento aceita o que os militares colocam sem nenhum questionamento. Até para encerrar, isso nos traz um pouco o conteúdo de um debate que teve a sua participação recentemente na Embaixada.

R - Posso adicionar mais um pilar nessa coisa?

P – Claro!

R – Sobre o que é importante nessa relação. Também é muito importante na Alemanha nós termos decidido depois da Segunda Guerra Mundial, e quando as forças armadas alemãs foram reestruturadas em 1955, não ter nenhuma corte militar, tribunal militar. Basicamente, se alguém, um soldado por exemplo, comete um crime, ele vai ser passado a tribunais civis. Eu não sei sobre o Brasil, mas os militares do mundo inteiro têm a sua própria corte por isso que permanece dentro do sistema. Nessas cortes militares, claro que são independentes, mas estão dentro do sistema das Forças Armadas, e isso gera problemas. No nosso caso, eles saem da estrutura militar e são colocados na frente de um tribunal civil, que é um controle civil e que permite um julgamento livre e descompromissado. Então, esse é um elemento muito importante no nosso sistema.

P - A sua observação sobre a justiça civil, comum, é muito importante, porque aqui no Brasil nós temos no âmbito federal o Superior Tribunal Militar e, no âmbito dos estados, a Justiça Militar Estadual, que julga principalmente os crimes e investiga crimes militares das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares também, pela nossa Constituição. De fato, essa é uma discussão muito presente aqui. Eu citava certa negligência do Parlamento brasileiro com o tema militar. Isso infelizmente não tem outra palavra para definir. E não só do Parlamento, mas eu acho que a burocracia pública deixou os militares negligenciarem nos últimos 30 anos toda a relação civil-militar e as condições. Eu retomo uma fala sua e, principalmente uma reflexão que o General Rocha Paiva fez em um evento da Embaixada Alemã, se eu não me engano, no Forte de Copacabana, algum tempo atrás. O General Rocha Paiva falou que as Forças Armadas brasileiras criam as condições para a democracia. E a sua resposta foi bastante enfática em dizer que elas não têm papel doméstico, como já foi frisado e que, portanto, não cabe a elas ter um papel político, mas servir à democracia e não tutelar a democracia. Não pode ser, de certa forma, um poder moderador. No Brasil, com um número tão grande de militares mas, sobretudo, com essa confusão entre poder civil e cargos ocupados por militares e serviço ativo das Forças Armadas, nós temos um desafio gigante, que é garantir instituições democráticas em que o processo não seja apenas focado no voto, não é? O voto é uma dimensão importante da democracia, mas sabemos bem que para existir uma democracia as instituições precisam ser democráticas. Então, como é que poderíamos, para finalizar, pensar um pouco a respeito do papel das Forças Armadas em uma democracia diante dos desafios contemporâneos? Uma reflexão mais aberta, sem casos específicos. Pensando Forças Armadas não como papel moderador, mas como uma parte fundamental de um estado, de uma nação.

R - O Parlamento tem que se interessar para ter poder de decisão em relação a algumas coisas. Seja por lei, ou de outra forma, uma lei que ainda não existe. Mas, quando aparece um plano de defesa, sim. A função do Parlamento não é simplesmente ajustar um milhão para cá, outro milhão para lá. Não. É arranjar as estruturas que existem. Então, o Parlamento tem que estar interessado nesse tipo de cultura. Eu acho que é muito importante esse tipo de "controle" da mídia. Basicamente, significa o quê? A mídia está interessada no que está acontecendo dentro das Forças Armadas. Não só no jogo da hierarquia, mas se você tem relatórios sobre isso na imprensa, isso também ajuda o controle. É um processo longo. Você falou certo. Eu estava em um painel com o General e ele disse que o papel das Forças Armadas no Brasil é como o de mediador e, no caso atual, entre a Corte Suprema e o governo, por exemplo. Esse não é o papel das Forças Armadas. Eles não têm que mediar. Existe uma separação de poderes no Brasil e vai ser difícil, mas essa é a maneira política. O confronto não é inevitável. Agora, você não pode assumir que o papel das Forças Armadas seja o mediador entre instituições democráticas, constitucionalmente instituídas, de poderes diferentes. As Forças Armadas não têm esse poder. Portanto, nós temos que deslegitimar esse tipo de narrativa, esse tipo de discurso. É um processo longo, esse é o ponto. Eu não sei como isso funciona no Brasil, mas tem tudo a ver com o sistema de promoções. No sistema alemão, se não me engano, a promoção de tenente-coronel para coronel já é um passo em que o gabinete tem que decidir. O gabinete, ou seja, o governo, tem que decidir isso, tem que aprovar isso. É proposto pela política militar. Definitivamente, o governo tem que aprovar quando chega à patente de general. Mas eu acho que isso também ocorre quando você é promovido de tenente-coronel para coronel pleno. Isso é uma decisão do Parlamento. Não que eles serão sempre contestados, mas é assim que funciona. A política, no final do dia, é o último recurso para decidir se alguém promove pessoas nas Forças Armadas a partir de um determinado cargo. Com esse sistema de promoção, você tem um alavancamento, uma posição vantajosa para criticar as pessoas certas. Isso não quer dizer que sejam as pessoas simpáticas ao governo atual, mas é com esse papel que as Forças Armadas têm que manter a sua política, a sua força política restrita e ser um elemento neutro na sociedade. Parece cínico falar isso, mas é muito fácil na Alemanha porque perdemos uma guerra. Quando Weimar foi dissolvido pelos EUA, Grã Bretanha, França e URSS, as quatro forças aliadas garantiram que a força armada alemã nunca se tornasse, outra vez, um sistema militarizado de um Estado dentro de um Estado. Nesse sentido, foi fácil fazer isso na Alemanha, não é? Agora, se não tivéssemos tido esse tipo de quebra histórica, teria demorado muito mais tempo para chegar a essa situação de neutralidade. Você pode ver países como a Polônia, Bulgária, Romênia. Basicamente, do dia para a noite, se tornaram democráticos, mas tinham as mesmas Forças Armadas que eram usadas pelo sistema soviético anterior. Tropas altamente politizadas. Claro que você tinha generais que, digamos, em outubro de 89, eram fortes apoiadores do partido comunista e, em janeiro de 1990, serviam a governos democráticos. Levou um longo tempo e muita ajuda externa na reforma do setor de segurança na maioria desses países. Ter ou não o apoio de ajuda externa foi a moeda de troca para transformar a relação entre as Forças Armadas e as forças políticas civis. E, 30 anos depois da guerra, continuaram ainda durante muito tempo na Europa Oriental. Continua mais ou menos do mesmo jeito. Então não é fácil arrumar isso. É um processo geracional, de gerações a gerações. Espero que não haja muito generais me ouvindo aqui. Eu vou receber um convite depois da Covid e vou querer falar: vocês tem que se livrar da política dentro das Forças Armadas no Brasil, senão vai dar problema.

Samira Bueno - Diretora-Executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Renato Sérgio de Lima - Diretor-Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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ENTREVISTA ESPECIAL Há 2 semanas

Entrevista Especial com MARCOS ANTONIO DE SOUZA: Reflexões sobre a Segurança Pública no Brasil

Investigador de Polícia Civil, professor e especialista em segurança pública fala sobre sua trajetória funcional e acadêmica, desafios do setor e as recentes mudanças na legislação policial.

UMA CIDADE NUA... Há 2 meses

Entrevista com Crispiniano Daltro: A Bahia exposta à violência urbana. Salvador, uma cidade nua.

Em entrevista ao Portal de Notícias Página de Polícia, Daltro faz uma análise profunda sobre o atual cenário da Segurança Pública na Bahia e seus desafios.

ENTREVISTA/C. DALTRO Há 3 meses

A MANIPULAÇÃO OCULTA: Uma reflexão sobre a Assembleia dos Policiais Civis

Crispiniano Daltro faz uma reflexão sobre a Assembleia dos Policiais Civis Delegados e Peritos com interesses específicos prejudicam a categoria e obscurecem o verdadeiro objeto da proposta de reestruturação remuneratória.

VULTOS DA REPÚBLICA Há 7 meses

Roberto Requião, o bélico: “Queriam me enterrar. Não conseguiram.”

Roberto Requião, o bélico: “Queriam me enterrar. Não conseguiram.” Ex-governador do Paraná reclama do câmbio flutuante, da Petrobras, de Gleisi Hoffmann, Fernando Haddad e José Dirceu. Largou o PT e, aos 83 anos, tenta se reinventar no Mobiliza, um partido nanico da centro-direita. “Queriam me enterrar. Não conseguiram.” LEIA NA ÍNTEGRA..

INSEGURANÇA Há 1 ano

'PCC vê na Bahia potencial para suas transações', diz especialista que estuda a atuação da facção

Mônica Leimgruber diz ainda que a primeira organização criminosa do país surgiu em terras baianas.

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