O medo da violência cresceu no Brasil entre 2017 e 2022 e com ele houve um incremento no nível de agressividade presente na sociedade, que tem recorrido à violência como instrumento de resolução de conflitos, inclusive na arena política. Esse é o retrato apresentado pela pesquisa “Violência e Democracia: panorama brasileiro pré-eleições de 2022”, lançada nesta quinta-feira, 15/9, data que marca a comemoração do Dia Internacional da Democracia. Pesquisa inédita do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em parceria com a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS), e encomendada junto ao Instituto Datafolha, mostra que os brasileiros estão com medo da violência política, a ponto de relatarem casos de violência política e de se sentirem inseguros por conta de suas escolhas políticas e partidárias. De acordo com a pesquisa, 3,2% dos entrevistados, o equivalente a cerca de 5,3 milhões de brasileiros com 16 anos de idade ou mais, disseram que foram vítimas de ameaças por motivos políticos nos 30 dias anteriores ao levantamento. Outros 67,5% dos entrevistados afirmaram que sentem medo de serem agredidos fisicamente em razão de suas escolhas políticas ou partidárias. Foram realizadas mais de 2.100 entrevistas em todas as regiões do Brasil, entre os dias 3 e 13 de agosto de 2022.
Os resultados apontam para um quadro preocupante, em especial às vésperas do primeiro turno das eleições de 2022 e diante da escalada da violência política que tem atingido eleitores, candidatos e candidatas em várias regiões do país.
A boa notícia é que quase 90% dos entrevistados concordam que o vencedor das eleições nas urnas deve ser empossado em 1º de janeiro de 2023; 89,3% concordam com a frase “O povo escolher seus líderes em eleições livres e transparentes é essencial para a democracia”, e 88,5% concordam que “O povo ter voz ativa e participar nas principais decisões governamentais é essencial para a democracia”.
Para compreender a percepção da população brasileira acerca da agenda de direitos – típica das democracias –, da adesão a valores autoritários e da satisfação e apoio ao próprio regime democrático, a pesquisa repete a investigação de dois indicadores criados pelo FBSP em 2017 – Índice de Propensão ao Apoio a Posições Autoritárias e Índice de Propensão ao Apoio à Agenda de Direitos Civis, Humanos e Sociais – e cria um novo índice: Índice de Propensão à Democracia. Os índices têm escala de 0 a 10 e são formados por diferentes dimensões com base em um conjunto de afirmações que medem o grau de concordância ou discordância do entrevistado.
O resultado do Índice de Propensão à Democracia, que mede o quanto as pessoas estão propensas a apoiar valores democráticos, como respeito às instituições e leis instituídas, separação dos poderes, deveres e direitos dos poderes públicos, processo eleitoral, liberdade individual e direitos humanos, atingiu 7,25 na escala. A pontuação é considerada alta pelos responsáveis pela pesquisa, em especial porque mais da metade dos respondentes registrou pontuação igual ou superior a 7 pontos, de 0 a 10.
Sensação de medo e insegurança
Outra descoberta importante da pesquisa é que a queda nos números de mortes violentas no Brasil, que tem sido observada desde 2018, não foi percebida pela população como indício de sociedade mais segura e, de acordo com o estudo, a exploração do medo tornou-se arma política. O estudo mostra que o medo da violência cresceu desde 2017 – era de 0,68 numa escala de 0 a 1 e está em 0,76.
Na pesquisa, o medo de ser vítima de grupos armados (traficantes, milícias e pistoleiros) está em 83,9% dos entrevistados, sendo que 73,9% dos entrevistados afirmam ter muito medo. O medo de sofrer violência por parte das polícias militares cresceu: está em 63,8% dos entrevistados, contra 59,5% em 2017.
Apesar do discurso autoritário e da exploração política da violência policial, 7 em cada 10 pessoas (66,4% dos entrevistados) não acreditam que armar a população aumentará a segurança. A arma de fogo como uma das soluções para os problemas que a própria política não consegue resolver mostra-se, pela pesquisa, uma aposta temerária e descolada da realidade da segurança pública do país.
O Índice de Propensão ao Apoio a Posições Autoritárias caiu desde a última pesquisa, há 5 anos: em 2017 foi de 8,10 e em 2022 é de 7,29. A queda só não foi maior por conta do aumento na dimensão “agressividade autoritária” – predisposição à hostilidade a minorias –, impulsionada, exatamente, pela incitação à radicalização de diversos temas que tangem a segurança pública e a democracia.
Isso porque a tendência a apoiar posições autoritárias em 2022, assim como em 2017, é maior entre quem tem mais medo da violência (índice 7,48) do que entre quem tem menos medo (7,16). O discurso autoritário, no entanto, perdeu força entre os mais jovens, de 16 a 24 anos. E, em um pedido de socorro que acredita nas políticas públicas e no Estado, quem tem mais medo da violência tende a ser mais favorável à agenda de direitos – índice 7,7 contra 7,2 entre os que têm menos medo de sofrer violência. A defesa do armamento civil e o discurso que foca apenas na força policial (muitas vezes letal) como solução para as violências, que acabam estimulando ataques às garantias de direitos e às instituições na mediação de conflitos, só conseguem encontrar eco em um cenário de captura das pautas da segurança para fins políticos. A população mostra-se aberta a projetos não violentos que aplaquem o medo e garantam direitos, cidadania e segurança para todos.
População reconhece racismo e agenda de direitos
Apesar da queda no índice de apoio à agenda de direitos, de 7,8 em 2017 para 7,6 em 2022, houve uma melhora na percepção sobre um marcador que é pungente nas violências e desigualdades brasileiras: o racismo. Em 2022, 83,4% consideram que há racismo no Brasil, enquanto esse número era de 70% em 2017.
Outro dado que surpreende é o apoio de 82% dos entrevistados à demarcação de terras indígenas, em meio a um cenário grave de violência na Amazônia e acirramento de conflitos socioambientais.
Os maiores percentuais de concordância se encontram no apoio a programas de transferência de renda ou assistência do Estado a pessoas que estão passando fome. 92,1% dos entrevistados concordam que “Se uma pessoa está passando fome, é essencial que receba assistência pública (Prefeituras, Governo do Estado, Governo Federal)”, enquanto 87,7% concordam que “Se uma pessoa é muito pobre, é justo que receba o Auxílio Brasil ou Bolsa Família”.
O apoio à igualdade de gênero entre representantes políticos no Congresso Nacional está em 82,2% dos entrevistados. Interessante notar que o apoio mais baixo aos direitos se encontra no posicionamento sobre as cotas raciais: embora reconheçam amplamente o racismo, somente 67,6% acham que a adoção de cotas tem impacto na redução da desigualdade entre pessoas negras e brancas.
Embora pareçam apoiar direitos das mulheres e da população LGBTQIA+, os entrevistados ainda se sentem divididos com a questão sobre o direito ao aborto. A assertiva tenta medir o apoio à proibição em todos os tipos de casos, e tem-se que 36,2% consideram que há alguns casos em que o direito ao aborto deve ser garantido. Contudo, 41,8% concordam com a afirmativa de que o procedimento deveria ser proibido em todos os casos, número significativo de entrevistados que vetam o direito ao aborto, mesmo em casos nos quais a lei brasileira já o assegura.
Apesar de registrar a maior discordância, não é de se desprezar o fato de que 67,6% reconhecem uma relação entre a condição precária das prisões e o fortalecimento das facções e do crime organizado. Esse dado, somado ao posicionamento contrário ao uso civil de armas de fogo, mais uma vez demonstra uma janela de oportunidade de fortalecimento da agenda de segurança pública em consonância com as garantias de direitos, apoiadas por parcela significativa de entrevistados.
Portanto, uma das principais contribuições desta pesquisa é demonstrar que a pauta da segurança pública assume caráter estratégico na formação das representações sociais acerca da forma com que o Estado e a sociedade devem lidar com os conflitos sociais contemporâneos. É preciso que cada vez mais lideranças políticas e grupos sociais, em diferentes posições do espectro político-ideológico, construam projetos e políticas para que segurança pública seja, de fato, um direito fundamental e universal em nosso país. Enquanto o medo da violência, em suas diversas modalidades, imperar, o Brasil enfrentará obstáculos significativos à consolidação de seu regime democrático e de bem-estar da população.
DAVID MARQUES - Coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
MARINA BOHNENBERGER - Mestranda em Antropologia Social (USP) e Consultora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
ISABELA SOBRAL - Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo.