A história das nações modernas é de maneira geral uma história de conquista de direitos (civis, políticos e sociais) e de inclusão de parcelas cada vez mais amplas da sociedade ao status de cidadania. É uma história de construção de mecanismos institucionais de alternância no poder e controles recíprocos entre Executivo, Legislativo e Judiciário, cabendo a este último, como guardião da Constituição e poder contramajoritário, frear os arroubos autoritários e garantir o império da lei. O Brasil não foge à regra, embora com especificidades que nos caracterizam como nação periférica e de modernidade tardia.
No processo histórico de superação da opressão e do arbítrio, e de afirmação de direitos, podemos destacar três momentos marcantes: a abolição da escravidão, ainda durante o período Imperial, em 1888, a aprovação da Consolidação das Leis Trabalhistas, em 1943, em pleno Estado Novo getulista, e a Constituição Federal de 1988. Cada um desses momentos propiciou o surgimento de uma “onda” conservadora, com o controle das instituições por forças comprometidas com a manutenção de privilégios e desigualdades próprias de uma sociedade hierárquica e piramidal.
No primeiro caso, a reação se deu, paradoxalmente, com a Proclamação da República, que destituiu a monarquia não pelo que representava de conservadorismo e tradição, mas pelo viés liberal e progressista assumido com a abolição, e instituiu a República Velha, conhecida pelo poder senhorial de oligarquias regionais semifeudais. A reação aos direitos trabalhistas instituídos por Getúlio Vargas, e ao crescimento da organização da classe trabalhadora em expansão, veio com a resistência conservadora que levou ao golpe de 64, e ao controle político exercido por uma casta militar e oligarquias regionais por mais 20 anos.
A contraposição às conquistas da Carta de 88 sempre esteve presente, representada pelas estruturas de poder que se mantiveram e reproduziram na Nova República, em diferentes governos, e mais recentemente batizadas de “Centrão”. Mas ganha uma nova dimensão 30 anos depois, com a eleição de Jair Bolsonaro. O obscuro ex-deputado e ex-capitão do exército, excluído por atentar contra a hierarquia e as normas militares, e conhecido por capitanear uma dinastia familiar de políticos cariocas afeitos a “rachadinhas”, e a parcerias com grupos milicianos em territórios de favela, chegou à Presidência da República defendendo a tortura e as mortes praticadas pela ditadura, combatendo direitos de grupos sociais vulneráveis, como negros, indígenas e homossexuais, e atacando as conquistas das mulheres, de trabalhadores assalariados em geral e das redes de proteção ambiental e social. Ou seja, mirando explicitamente nas conquistas constitucionalizadas em 88.
Uma vez eleito, Bolsonaro passou a justificar suas dificuldades para governar na falta de apoio no Congresso, insatisfeito com o fim das “mamatas”, e no Supremo Tribunal Federal, que no seu papel de zelar pela Constituição acabou entrando em choque por diversas vezes com o ex-capitão. As dificuldades no Congresso foram em grande parte superadas com a cooptação do Centrão por meio de emendas parlamentares, que garantiram a manutenção ou ampliação das bases eleitorais de seus principais representantes. Mesmo assim, no Senado a maioria não se curvou às vontades do ex-capitão, expondo publicamente, por meio de CPI, todos os desmandos, incompetência e casos de corrupção no contexto da pandemia de covid-19. Da mesma forma, o Supremo impediu que o governo federal impusesse o “liberou geral” durante a pandemia, assegurando que governadores e prefeitos tivessem sua competência concorrente reconhecida para estabelecer políticas de saúde pública de enfrentamento ao contágio. De qualquer forma, o conflito entre poderes e esferas de governo resultou em 700 mil mortes, colocando o Brasil, com menos de 3% da população mundial, como o país no qual ocorreram 11% das mortes pela pandemia.
Mesmo desgastado por seus desmandos na pandemia, pelos constantes conflitos com ex-aliados, pelo aumento do desemprego e do endividamento das famílias, pelas manifestações de cunho racista, homofóbico e machista, pelos ataques à imprensa, pelo desmonte das Universidades e da política de ciência e tecnologia etc., Bolsonaro se manteve competitivo. A uma, porque o detentor da cadeira de Presidente no Brasil detém um poder muito difícil de ser contraposto, motivo pelo qual todos os mandatários candidatos à reeleição tiveram sucesso desde 88. A duas, porque usou de forma explícita a máquina pública para alavancar sua candidatura, aparelhando para tanto os próprios símbolos da República e comprometendo o equilíbrio fiscal. A três, porque detém apoios fiéis de setores sociais que ou foram explicitamente beneficiados pelo governo, ou mantêm adesão ideológica ao bolsonarismo como caminho para um país livre da esquerda, do comunismo, e de “tudo o que não presta”, nas palavras de um de seus apoiadores.
Se não obteve o resultado esperado no primeiro turno, Bolsonaro assegurou a eleição de aliados importantes em governos estaduais, assim como no Senado, bastião que faltava para impor mudanças definitivas na Constituição, amordaçar o Judiciário e avançar rumo a uma autocracia sem limites.
Há quem defenda justamente esse caminho, e tudo o que significa em termos de inflexão de nossas conquistas democráticas. Mesmo para estes, vale a reflexão: quais as consequências para o funcionamento das polícias de uma guinada autoritária?
A experiência histórica mostra que, num contexto de poder autocrático, seja em nome do livre mercado, como no Chile de Pinochet, seja em nome dos “interesses populares”, como na Venezuela de Chaves e Maduro, em que o Poder Executivo se impõe sobre os demais, a disputa política se dá por outros meios. Nas estruturas burocráticas do Estado, entre as quais se situam as polícias, tende a ocorrer um processo de insulamento institucional exacerbado, com cúpulas blindadas e politicamente comprometidas, e cadeias de comando absolutamente centralizadas. Ocorre a imposição de poderes discricionários tanto no interior das polícias militares quando na coordenação da investigação criminal, que fica sujeita aos interesses do governo.
Se por um lado a falta de transparência e controle sobre as polícias autoriza os policiais que atuam na ponta a agir de forma violenta e arbitrária, por outro abre espaço para a venda de “mercadorias políticas”, fomentando a corrupção. O resultado é a insegurança dos policiais de baixo escalão, que ficam à mercê de um poder ilimitado e sem controle de seus comandantes/chefes de polícia, desprofissionalização em nome de alinhamento político ao governo por parte das cúpulas das polícias, e a perda de legitimidade das polícias frente à sociedade, maior prejuízo causado nas relações da polícia com a população a médio e longo prazo. As promessas de aliados de Bolsonaro que concorrem aos governos estaduais, como Tarcísio de Freitas em São Paulo e Onix Lorenzoni no Rio Grande do Sul, de retirarem ou não colocarem as câmeras do fardamento das polícias, mesmo diante das evidências de que impactaram positivamente na redução da letalidade policial, somente podem ser compreendidas neste contexto.
Em pouco mais de três décadas de democracia, avançamos como sociedade e como instituições, construindo uma cultura democrática de transparência, controle público, qualificação dos serviços, monitoramento e avaliação de resultados, nos interstícios de uma cultura institucional tradicionalmente autoritária e pouco afeita a prestar contas. Consolidar essa nova cultura leva tempo, exige persistência, e necessita comprometimento ético de servidores com a democracia. Que possamos seguir adiante. Ainda está em nossas mãos.
RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO - Sociólogo, professor titular da Escola de Direito da PUCRS e membro do INCT-InEAC.