A política criminal é o momento da decisão da ação política no âmbito do sistema de justiça criminal, que é integrado por vários subsistemas. Cada um deles corresponde à atuação de um poder específico, embora não exclusivamente, alternando-se as competências dos Poderes Executivo e Judiciário, com as seguintes predominâncias: política de segurança (Executivo), política judiciária (Judiciário), política penitenciária (Executivo e Judiciário). O Ministério Público tem sido também um ator importante na formulação de políticas nesta área, por meio de seu Conselho Nacional (CNMP), assim como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Paralelamente à atuação das agências de controle de seus respectivos poderes há um processo legislativo. As decisões no âmbito do Legislativo mais visíveis estão, na maior parte das vezes, relacionadas à criminalização primária de condutas (definição dos crimes e penas na lei), mas é muito importante também a parte procedimental (regras processuais), que às vezes surgem juntas em leis sobre matérias específicas, às vezes em separado (v. g. Código Penal e Código de Processo Penal).
Os documentos através dos quais a política criminal é formulada ou nos quais ela pode ser identificada refletem a importância que se dá a determinados temas. A ideia de mundo dos formuladores de políticas repercute diretamente em suas decisões, como por exemplo, na política ambiental e armamentista do governo que se encerra. Os responsáveis pela formulação e implementação da política nestes âmbitos tiveram suporte em setores da sociedade que foram influentes de alguma maneira na história nacional, como os latifundiários e os militares, mas que não encontravam mais um léxico para expressar suas demandas, porque contrárias às garantias de direitos de uma ampla maioria de trabalhadores comuns. De um tempo para cá conseguiram retomar suas demandas ao aliá-las a uma batalha no campo moral/religioso, colocando em risco o Estado Democrático de Direito. Os direitos das minorias foram percebidos e situados no campo da transgressão, não como direitos, tais como a necessidade de proteção maior para as mulheres, negros e homossexuais, sendo questionadas as “ideologias” de gênero, as políticas de cotas e as famílias que se constituíram fora do antigo “modelo”.
Trata-se, pois, do último suspiro daquilo que no âmbito teórico da política criminal ficou conhecido como Movimento de Lei e Ordem, de cunho conservador, que se utiliza da mídia para pôr medo na população. Aliás, muitas vezes são comunicadores sociais em veículos “pinga sangue” que se elegem para compor o Executivo e o Legislativo. É interessante notar isso, porque nos damos conta de que quem tem voz tem poder.
Pensando no Poder Legislativo, sendo ele próprio um desafio na política criminal do próximo governo, podemos citar algumas bancadas no Congresso Nacional, com as respectivas áreas de repercussão direta:
– Bala: indústria armamentista – risco para a vida e para a integridade física;
– Boi: latifundiários – risco para a natureza e para os povos indígenas;
– Bíblia: evangélica – risco para a saúde reprodutiva, para o desenvolvimento da ciência e para as liberdades dos afetos;
– Jaula: indústria de prisão e monitoramento – risco para políticas de prevenção e reinserção social;
– Farda: policiais e militares – risco para as políticas de controle da violência.
Para que observemos as forças políticas em ação e os respectivos efeitos, é útil identificar quantos congressistas sobram fora dessas bancadas.
Vejam que nem falamos em descriminalização de condutas. Quando o Legislativo se movimenta, é para aumentar o número de condutas definidas, ou suas penas, ou suas estratégias de supostamente controlá-las. Um jeito de descriminalizar condutas no atacado é elaborar um novo código e fundamentar pela importância de que sejam aqueles os tipos penais mais necessários para o momento. No varejo, como acabaram de fazer com o Pacote Anticrime, por exemplo, não sai nada, só entram novas condutas, num país com dificuldades diversas em torno do campo penal, que podem ser resumidas nos seguintes pontos:
– Violência e corrupção policial – corregedorias e controles externos com ações fracas, centradas na punição daqueles que já perderam a base de sustentação;
– Percepção social de descontrole sobre a violência – insegurança subjetiva incentivada pela mídia e oportuna para o mercado da segurança privada;
– Grande número de registros criminais: normalmente aferidos por dados oficiais, concentrados em crimes contra o patrimônio e drogas em razão das operações policiais;
– Política criminal de tipo “denuncista” – motiva o ingresso maior de casos no sistema, provocando congestionamento e não necessariamente melhor resposta;
– Morosidade da justiça – desrespeito aos prazos fixados para investigações e processamentos;
– 3º país do mundo com mais gente presa, rumando no sentido contrário dos maiores encarceradores e dos países desenvolvidos de forma geral;
– Condenações em cortes internacionais por problemas de funcionamento do sistema penal;
– Estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário declarado pelo STF, com diversas repercussões que confirmam o descontrole punitivo, mas que ainda não o reencaminham – indenizações pelo excesso na execução penal, compensações de pena, central de vagas, monitoração eletrônica.
O sistema penal é o lugar das ilegalidades, e precisa deixar de ser. O Poder Executivo pode e deve propor essas alterações. Os regimes prisionais definidos na lei penal, por exemplo, não fazem mais sentido. Vejamos o regime aberto, que deixou de ter investimentos. No entanto, hoje se fala em “aberto harmonizado”, que é o aberto com tornozeleira, mas isso é uma construção dos tribunais, não existe na lei. Há também o “semiaberto que se puxa no fechado”, que é uma categoria que foi identificada pela pesquisadora Carolina Lemos ao estudar os presídios do Distrito Federal [1].
Quando o sistema penal age ele cria problemas, mas isso também ocorre quando deixa de agir, e isso o deslegitima. Um sistema deslegitimado leva à vingança privada, aos linchamentos, reforça a ideia de que as pessoas devem se armar para cuidar da própria segurança.
Podemos deixar que outros ramos do direito e outras esferas da política cuidem de temas para os quais o sistema penal já se provou ineficiente, como é o caso do controle de substâncias ilícitas. A política de drogas é um ponto nevrálgico do sistema de controle atual pois faz girar muito dinheiro em torno de si, sendo que o foco não é a saúde ou o controle de danos, mas a lucratividade do comércio ilícito, que move a indústria armamentista e da segurança privada, incluídas as tecnologias de controle que se situam num terreno pantanoso entre uma coisa e outra. Sem uma regulação distinta neste setor será muito difícil reduzir a violência policial e o superencarceramento.
Não há uma resposta correta, mas existem respostas estratégicas. Não se pode correr riscos fazendo alterações em momentos políticos que não sejam passíveis de participação dos grupos que têm interesses públicos na discussão. E neste caso não são apenas os operadores do sistema e sim os destinatários das políticas públicas, com bases científicas e não com base na moral, na vivência ou nos sentimentos de “empresários morais”[2]. É preciso ouvir os movimentos sociais e as pessoas presas, por exemplo. Mais do que tudo, é preciso mudar a lógica de que o castigo resolve alguma coisa. Isso é decorrente de uma influência religiosa sobre um sistema dentro de um Estado laico.
Garantir direitos e comunicar amplamente os seus fundamentos é o grande desafio.
[1] ACESSE AQUI:
[2] “Associam-se e dão força aos movimentos de lei e ordem os ‘empresários morais’. Podemos dizer que eles são seres de alto status, ou pelo menos status médio, com penetração na mídia, e que reúnem em torno de si demandas punitivas decorrentes de traumas, tragédias particulares, ressentimentos e hostilidade.” (Zackseski, Cristina. Fragmentos do jogo político criminal brasileiro. In. MACHADO, Bruno Amaral. Justiça Criminal e Democracia. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 270)
CRISTINA ZACKSESKI - Professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, co-líder do Grupo de Pesquisa Política Criminal e coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (NEVIS/CEAN/UnB).