Silvio Almeida faz seu discurso de posse, já histórico, ao assumir o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania
“Trabalhadoras e trabalhadores do Brasil, vocês existem e são valiosos para nós. Mulheres do Brasil, vocês existem e são valiosas para nós. Homens e mulheres pretos e pretas do Brasil, vocês existem e são pessoas valiosas para nós. Povos indígenas deste País, vocês existem e são valiosos para nós. Pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexo e não binárias, vocês existem e são valiosas para nós. Pessoas em situação de rua, vocês existem e são valiosas para nós. Pessoas com deficiência, pessoas idosas, anistiados e filhos de anistiados, vítimas de violência, vítimas da fome e da falta de moradia, pessoas que sofrem com a falta de acesso à saúde, companheiras empregadas domésticas, todos e todas que sofrem com a falta de transporte, todos e todas que têm seus direitos violados, vocês existem e são valiosos para nós. Com esse compromisso, quero ser ministro de um País que põe a vida e a dignidade em primeiro lugar.”
À medida que essas palavras ressoavam pelo ar daquele salão na Esplanada, havia um crescendo nos aplausos, impondo um ritmo que só poderia ter, como epílogo, o pleno convencimento de quem ouvia aquelas obviedades tão necessárias. Comoção em uma atmosfera de cena de cinema. Esse foi Silvio Almeida, em seu discurso de posse no Ministério dos Direitos Humanos, parecendo tirar tudo o que falava de dentro da própria alma. Ele e seu texto já podem ser considerados desde já a marca especial do novo tempo que se inicia com este governo federal – ou, talvez fosse melhor dizer, com o fim do anterior.
Se este colunista aqui sabe que o dito, ainda que de modo tão emocionante, foi apenas lugar comum e nada mais, imagine se não o saberia um intelectual como o próprio ministro. Pois tanto sabia que ele próprio avisou, na introdução: “Permitam-me, como primeiro ato público como ministro, dizer o óbvio. O óbvio que, no entanto, foi negado nos últimos quatro anos.”
Coisas dadas, tão certas como o oxigênio no ar e a água na torneira, de repente faltaram de forma bizarra
É disso que se trata. A comoção existe porque o óbvio não existiu em forma de políticas públicas no desgoverno que felizmente é passado, embora as graves feridas ainda nem tenham tido tempo para se tornar apenas feias cicatrizes. Sem se dar conta, no último quadriênio o brasileiro médio ficou sedento de coisas a que não parecia dar valor, porque não achava que precisasse dar valor, já que eram coisas que estavam sempre ali porque deveriam sempre estar ali.
“Coisas” como a campanha de vacinação no postinho do bairro, para atender ao zelo da mãe da criança pequena; ou o remédio da farmácia popular, para o idoso carente e doente; ou a fiscalização do garimpo ilegal, para a comunidade indígena no meio da Amazônia; ou, ainda, a garantia da liberdade de cátedra, para quem leciona e geralmente não é bem pago. Coisas dadas como tão certas como o oxigênio no ar e a água na torneira, mas que, de repente, faltaram de forma bizarra.
Os personagens que destruíram a história do Brasil nos últimos quatro anos, com uma balela oca sobre “Deus, pátria, família e liberdade” – discurso o qual, torcendo-o, não se extraía sumo algum –, nem merecem ter seu nome citado no mesmo texto aberto com palavras de um cidadão da estirpe de Silvio Almeida.
E assim será: não serão citados nominalmente. Mas seus desfeitos merecem registro, a título de exemplos da distopia que agora faz tudo parecer óbvio. Deixemos o mais indesculpável para o fim – o chefe da bagunça toda, aquele que nomeou tantos estorvos para as principais funções da República. Falemos antes da ninhada de gente incompetente para a função, ou competente somente para fazer, na função, a coisa errada.
No Ministério das Relações Exteriores, esteve alguém cuja tarefa principal foi criar intriga com o maior parceiro comercial do País, a título de guerra cultural, e que achou que seria uma tomada de decisão interessante optar por ser pária mundial em um cenário dominado pelo “comunismo” e pelo “globalismo”. Já o antiministro do Meio Ambiente, certa vez, pegou um voo oficial para o interior de Rondônia e foi conversar com madeireiros que atuavam com extração ilegal em área de proteção para… acalmá-los e defendê-los!
No terreno da cidadania, a responsável pela pasta que hoje é de Silvio – e cuja denominação era Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – teve como plataforma de trabalho a frase enunciada logo em sua posse no cargo: “Atenção, é uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa!”, gritou, em meio a aplausos insanos. No Ministério da Educação, de todos os tenebrosos ocupantes, o que pairou mais tempo por lá foi um pastor que acabou envolvido em um escândalo no qual apareceram outros religiosos, propinas em barra de ouro e bíblias decoradas com a foto do titular da pasta.
O antiministro mais conhecido da Saúde foi um general que disse ao capitão da reserva “um manda e o outro obedece”. Inverteu a escala hierárquica militar e assumiu a principal pasta no contexto de uma gigantesca crise de saúde com a incumbência de fazer grassar o negacionismo que dois médicos que o antecederam no cargo não quiseram bancar. E dá-lhe cloroquina, dá-lhe falta de oxigênio, dá-lhe atraso na compra de vacina! E foi assim que o Brasil teve uma média de mortes quatro vezes maior do que a mundial na tragédia sanitária.
O legal era fazer troça da vacina e alertar que seus efeitos eram desconhecidos – poderia ter por aí alguma pessoa transformada em jacaré
Finalmente, ele. Com o País vivendo apenas o início da curva de subida do número de mortes em uma gravíssima pandemia, o antipresidente da República, incentivando as aglomerações e o uso de tratamento precoce como solução, dava de ombros à situação dizendo um “quer que eu faça o quê, não sou coveiro!”; e, com a Covid em seu pico, mas já com a esperança dos imunizantes à disposição, resolveu que o legal era fazer troça da vacina e alertar que seus efeitos eram desconhecidos, que de repente poderia ter por aí alguma pessoa transformada em jacaré.
Depois da pandemia, entre tantas outras insensatezes, veio a obsessão por conspurcar a eleição. Tratou de se cercar de teorias que levassem a população a acreditar que as urnas que o tinham elegido desde 1996 estavam agora passíveis de fraude. Exigiu voto impresso, falou para todo mundo ouvir que não aceitaria resultado que não achasse que fosse “limpa” e, mais de uma vez, disse que poderia nem haver eleições. Deslumbrado, soltou de vez seu golpismo com toda a força ao se sentir encorajado pela multidão de amarelo no 7 de Setembro mais absurdo em dois séculos. Depois de dizer que não obedeceria mais ordens do tal ministro do Supremo, sem respaldo, murchou e assinou carta de pedido de desculpas. Foi mal, estava doidão. Perdeu a eleição, mesmo depois de tentar vencê-la a todo custo – inclusive aos cofres públicos e à imagem das instituições. Derrotado, se recolheu. Nas raras vezes em que apareceu, foi para chorar em público. Deixou seus apoiadores pedindo golpe na porta dos quartéis e viajou fugido para os Estados Unidos.
Outros novos ministros e ministras também disseram obviedades como Silvio – por exemplo, Nísia Trindade, na Saúde, declarou que a pasta vai se guiar pela ciência e foi ovacionada. De todas as posses ministeriais, porém, a de Silvio Almeida certamente foi a mais marcante, por ter declarado, com todas as letras, que o óbvio precisa voltar a ser dito e voltar a ser feito. Depois de tantas trevas, que sua fala marque o reinício da nação. E que o passado distópico vá de vez para a lata de lixo da história.