A virada do ano e a mudança de governo no Brasil nos levam a indagar o que temos pela frente, em matéria de segurança pública. Para tanto, em primeiro lugar é necessário reconhecer que os desafios são imensos para retomar um caminho de consolidação democrática e reformas estruturais nas instituições policiais.
A conexão entre redes informáticas, teorias conspiratórias, negacionismo, militarismo e ideologias supremacistas reconfigurou as mentalidades ou representações sociais no interior das polícias civis e militares, atualizando e relegitimando discursos e práticas de exercício arbitrário do poder e uso excessivo da força contra determinados grupos e perfis de cidadãos.
Como pano de fundo dessas nem tão novas correntes reacionárias dentro e fora das polícias, parece estar disseminada uma concepção de mundo segundo a qual as sociedades humanas devem ser regidas pela “lei do mais forte”, garantindo a sobrevivência dos mais aptos e daqueles que demonstram alguma utilidade e subserviência frente aos poderosos. Privilégios são naturalizados, como decorrentes desta hierarquia social, que precisaria ser resgatada frente aos ideais igualitaristas da modernidade liberal, que no fim das contas levariam inexoravelmente a sociedades “comunistas”, com a perda da “liberdade” para afirmar a supremacia de alguns sobre os demais.
No contexto da crise climática global, estas correntes tradicionalistas e reacionárias sustentam um modelo “Arca de Noé 2.0”, no qual haveria lugar apenas para os mais aptos. Em situações como a de pandemia de covid-19, foi possível identificar essa vertente em governos como o do Brasil, que tentou levar adiante uma proposta de “imunidade de rebanho”, tratando as mortes pela doença como decorrentes de comorbidades e fraquezas individuais e naturais, que não deveriam ser lamentadas, mas aceitas como inevitáveis.
No âmbito da segurança pública, o tradicionalismo reacionário sustenta políticas armamentistas, considerando que a disseminação de armas de fogo seria o caminho para a garantia da defesa pessoal e da manutenção da liberdade frente a estados e instituições tendentes à imposição de limites e de regras coletivas. E às polícias caberia o papel de braços armados e empoderados do poder político, com liberdade para atuar (excludente de ilicitude) e investigar, de forma seletiva, os inimigos políticos do governo e os criminosos comuns. Garantiriam, assim, a manutenção de uma ordem social hierárquica e socialmente legitimada pela naturalização das desigualdades sociais.
Com base nessas “ideias-força”, constituiu-se no país, pela primeira vez desde os primeiros anos da ditadura militar, um amplo movimento em favor da desconstitucionalização do país e das instituições, que inclui empresários interessados em reduzir custos com seus empregados e com impostos, políticos corruptos relacionados com milícias urbanas e orçamentos secretos, militares e policiais desonestos, violentos ou ideologicamente convencidos de que o combate ao crime prescinde da garantia de direitos. Derrotados nas eleições presidenciais, permanecem mobilizados, tanto nas redes quanto nas portas dos quartéis, onde seguidores remunerados ou simplesmente desocupados permanecem desde a eleição, pedindo intervenção militar para impedir a posse do novo governo.
Este é o cenário em que ocorre a transição, dentro do qual se coloca a questão: como lidar com a emergência da extrema-direita no cenário político brasileiro, e seu potencial de desagregação institucional e dilapidação das conquistas de nossa recente construção democrática? Se de um lado o desafio é considerável, de outro abre uma janela de oportunidade para comprometer com a ordem democrática amplos setores da sociedade civil e das instituições, como se viu no próprio processo eleitoral.
Neste processo, foi possível perceber o compromisso com a democracia de setores importantes do empresariado (inclusive de empresas de comunicação), de setores do funcionalismo público, inclusive nas polícias e no Judiciário, que não se dobraram ao aparelhamento e à perseguição por motivos políticos, de cientistas e produtores culturais, comprometidos com a efetiva liberdade de expressão, sem negacionismo, crimes de opinião ou fake news.
Definida a estrutura de governo para a Justiça e a Segurança, serão mantidas em um único Ministério as questões que envolvem as relações institucionais do Executivo com os demais poderes, em especial o Judiciário, e com as polícias, em especial a Federal e a Rodoviária Federal, mas também a articulação com os governos estaduais para a coordenação de políticas nacionais de segurança pública. O recuo em relação à proposta de campanha, de recriação do Ministério da Segurança Pública, deu margem a críticas, em especial no sentido de que tiram de um tema cada vez mais central para a reconstrução democrática a devida centralidade na estrutura do governo. De outro lado, se justifica pela necessidade de reforçar a figura do novo ministro e o papel do Ministério na retomada de políticas de reconfiguração institucional, desde as necessárias reformas legais até o reforço de laços interinstitucionais necessários para a retomada do Sistema Único de Segurança Pública, criado pela Lei 13.675/2018, assim como a reafirmação da legalidade constitucional na gestão das relações entre justiça e polícias.
Pouco antes do segundo turno da eleição presidencial, alguns dos mais destacados pesquisadores da violência e da segurança pública no Brasil publicaram artigo¹ no qual procuram “situar, caracterizar e identificar possíveis explicações para a persistência da violência, em suas mais distintas modalidades, como problema social recorrente e desafio à consolidação da sociedade democrática e à promoção dos direitos humanos no Brasil.” Partindo de tradições teóricas e vínculos institucionais diversos, os autores são unânimes ao apontar três questões fundamentais que se impõem nesse debate: a primeira diz respeito ao monopólio estatal legítimo da violência. A segunda aborda a administração da justiça criminal. E a terceira trata da formulação e implementação de políticas públicas de segurança, inclusive políticas de encarceramento e de punição. Articular estes três âmbitos, apontando caminhos para a pacificação social e a afirmação de direitos, entre os quais o direito à segurança, é o desafio que temos pela frente.
¹ ADORNO, Sérgio et al. Violência e Radicalização. In FAPESP 60 Anos: a Ciência no Desenvolvimento Nacional. ACIESP-FAPESP, 2022, p. 190-221.
RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO - Sociólogo, professor da Escola de Direito da PUCRS, pesquisador do INCT-InEAC.
FERNANDA BESTETTI DE VASCONCELLOS - Socióloga, Coordenadora do PPG em Segurança Cidadã da UFRGS, pesquisadora do INCT-InEAC.